sábado, 16 de novembro de 2013

NOTAS SOBRE A X BIENAL DE ARQUITETURA



Correspondências
Charles Baudelaire

A natureza é um templo onde vivos pilares
Deixam filtrar não raro insólitos enredos;
O homem o cruza em meio a um bosque de segredos
Que ali o espreitam com seus olhos familiares.

Como ecos longos que à distância se matizam
Numa vertiginosa e lúgubre unidade,
Tão vasta quanto a noite e quanto a claridade,
Os sons, as cores e os perfumes se harmonizam.

Há aromas frescos como a carne dos infantes,
Doces como o oboé, verdes como a campina,
E outros, já dissolutos, ricos e triunfantes,

Com a fluidez daquilo que jamais termina,
Como o almíscar, o incenso e as resinas do Oriente,
Que a glória exaltam dos sentidos e da mente.

[Tradução de Ivan Junqueira. In: Ivo Barroso (org.), Charles Baudelaire - Poesia e prosa. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1995.]

Los Angeles

Centro Cultural São Paulo - teto jardim


A Bienal de Arquitetura de São Paulo bem que poderia ser chamada de Bienal da Cidade. Mais do que apresentar intervenções exemplares, obras edificadas, pequenas e múltiplas soluções para ínfimos problemas, formando aquela tradicional procissão enfadonha de arquiteturas banais e desinteressantes justapostos à salas especiais de homenageados,  a curadoria optou por apresentar uma pauta de temas sobre a cidade. Afinal, se algum consenso há nos dias atuais é a recolocação do tema da cidade no centro dos debates.  
Ideias, situações, discussões, ações são disparadas, para demonstrar que a cidade é muito mais do que pensamos, mais do que podemos conceber, que ela está muito além do que a arquitetura pode imaginar. Mais rica, problemática e paradoxal.
A opção de espalhar núcleos da Bienal pela cidade, ao invés de contê-la num único espaço me parece decorrente dessa dupla constatação: o reconhecimento dos limites atuais de profissão e a consciência da complexidade crescente da cidade.
Mas também decorre de uma atitude teórica, ou mais precisamente, de certa visão da contemporaneidade: a da condição do nomadismo como inerente à experiência metropolitana. Nessa deriva programada temos a chance de atravessar territórios, paisagens, fluxos; temos a oportunidade de nos deixar olhar a cidade, mas também ser olhados por ela. Entre um trânsito e outro, atravessamos as estruturas “expositivas”  espalhadas ao longo desse percurso circular.
Essa estratégia tem algo da dialética site/non site de Robert Smithson, no qual estando num lugar se remete ao outro e vice-versa, mas também há algo do conceito site specific já que em cada espaço institucional escolhido, o que se “expõe” tem algo a ver com o lugar expositivo.
O centro nervoso, a meu ver, é o Centro Cultural São Paulo, onde os caminhos se cruzam. Vou me concentrar fundamentalmente nesse local. Lá a mostra “Modos de Agir”, se espalha num espaço que se encontra em situação intermediária: entre o mecânico e o orgânico, entre arquitetura e paisagem, entre edifício e equipamento urbano. Ali, entre passarelas e plataformas, cidades mais diversas são discutidas. Das insólitas e inesperadas experiências orientais (a escala gigantesca, a velocidade das transformações, os lugares novos abandonados, a reversão da modernização em favor da volta ao “natural”) à crise dramática e assustadora de Detroit (o fracasso do modelo de modernização e da cidade industrial moderna), a questão de que tipo de cidade estamos construindo se impõe. E para demonstrar que as coisas estão longe de se reduzirem à fáceis posições dicotômicas, o caso de Los Angeles, outro exemplo de cidade-automóvel igualmente impõe a contra-pergunta do caso Detroit: nesta luta entre pessoas e carros, realmente em cidades como as nossas, podemos abrir mão de viver sem o automóvel? A título do pensar, a pergunta é tão ou mais necessária que simplesmente decretar a máquina como o vilão de nossas violentas realidades urbanas.

Nesse módulo – Carrópolis (carville) – não pude deixar de ficar agarrado pela penetrante observação de Jean Baudrillard, num dos painéis expostos:

“Algo da liberdade da circulação nos desertos se encontra aqui; Los Angeles, por sua estrutura extensa, nada mais e do que um fragmento habitado. Portanto, as freeways não desfiguram a cidade nem a paisagem; atravessam-na e desatam-na sem alterar o caráter desértico dessa cidade e expandem idealmente ao único prazer profundo, que é circular”.

A X Bienal, como vimos, foi tomar exemplos longínquos para colocar problemas que nos são comuns. Mas também trouxe realidades locais, que o Brasil, ou mais explicitamente, o eixo dominante SUL-SUDESTE desconhece.  É desconcertante o que vemos em “Brasil: o espetáculo do crescimento”. Ali, pelo visto, uma violenta urbanização/industrialização está em curso, da qual pouco sabemos. Belo Monte, Carajás, São Francisco, Agro-Negócio, Pré-Sal, todos estes fenômenos estão mobilizando e transformando as regiões Norte/Nordeste/Centro-oeste. Redes de energia, transporte, portos e aeroportos, cidades, tudo surgindo a uma velocidade inédita, formando um caldeirão imponderável de economias, urbanidades, sociabilidades e culturas. Coisas que acontecem no Brasil que o Sudeste desconhece mas que não escapam de um investigador atento e arguto como Eduardo Viveiros de Castro, em outra citação exposta na exposição:

“A Amazônia hoje é o epicentro do planeta. Do Brasil, é o epicentro, o alfa e o ômega. O Brasil se desloca para a Amazônia (...) Tudo acontece lá, o tráfico de drogas passa por lá, os interesses econômicos estão lá, os grandes capitais estão fluindo para lá, as questões da ecologia, o olhar do mundo, a paranoia e a ilusão do paraíso, tudo esta lá, ou voltando para lá. Para o bem ou para o mal, a  Amazônia virou o lugar dos lugares, natural como cultural; aliás, é lá que se esta sendo cozinhado um gigantesco guisado cultural, e que daqui nós não temos a menor ideia do que esta se passando”.

Porém, esse Brasil distante faz eco mais ao Sul. Tal qual um sismógrafo, uma linha do tempo (RIO NOW), novos mecanismos para flagrar as transformações em curso (NOVAS CARTOGRAFIAS) e uma imaginação dos novos tempos em tempo de regressão (RIO FUTURO – Sergio Bernardes) nos alertam para a antiga Capital Federal que está passando por um processo de transformação profundo, cuja direção parece muito desconectada de qualquer conceito ou visão do que seja efetivamente a dimensão pública ou de um processo de discussão crítica. E ainda que São Paulo não esteja diretamente representada na mostra (exceto pela esclarecedora história do “minhocão”), está implicitamente (ou talvez explicitamente) envolvida uma vez que a proposta do novo Plano Diretor coincide com a Bienal.
E não nos esqueçamos de que o fenômeno das multidões nas ruas aponta, em escala nacional, para o debate sobre “o direito à cidade”.

Antes de passar para os próximos núcleos, não posso deixar de apontar a bela e tocante homenagem ao “Robin Hood Gardens” projeto extraordinário e visionário dos Smithsons, em emocionante depoimento do casal sobre a história do projeto e com imagens históricas e esclarecedoras de uma obra de habitação exemplar. Uma experiência a ser, sem dúvida, recuperada e valorizada.

No MASP, os expoentes do “brutalismo” – Artigas, Paulo Mendes da Rocha e Lina Bo Bardi – se alinham a artistas como Hélio Oiticica e Cildo Meireles, numa aproximação incomum entre arquitetura e artes plásticas, o que abre perspectivas inesperadas de diálogos plásticos, exorcizando o sempre presente provincianismo que provoca o desdém mútuo entre as duas esferas. Há, sim, muito em comum entre arte e arquitetura do período, pois o brutalismo apesar de sua densidade e consistência nunca deixou de incentivar o livre percorrer dos espaços e a arte de Oiticica e Meireles sempre esteve atenta e participante do urbano, mesmo nos interiores do Museu.

Desdobrando a lógica curatorial de correlacionar espaços institucionais e mostras expositivas, temos no SESC Pompéia o lugar para as propostas colaborativas e coletivas, do mesmo modo que no Museu da Casa Brasileira experiências iconoclastas do habitar desde a década de 1970 são apresentadas (Casa Bola de Eduardo Longo, Casa Moriyama de Ryue Nishizawa e o programa Minha Casa, Minha Vida), não sem um viés crítico lançado contra o modo paternalista e medíocre das propostas edilícias e políticas habitacionais em curso no país.

Assim, nos diversos e dispersos núcleos temáticos (os “modos de ...”) espalhados por São Paulo, abrem-se discussões, problemas são explicitados e aí sim algumas intervenções de arquitetura e urbanismo, pontuais mas estratégicas, são apresentadas. Não à título de soluções ideais para os problemas levantados, mas pela convicção de que projeto é, de fato e de direito, uma forma de discutir não só os problemas metropolitanos, mas também de se refletir as condições de possibilidade e as especificidades da própria disciplina da arquitetura.

Estas e tantas outras atividades compõem a programação da X Bienal. Podemos concluir dizendo que esta se concebeu como uma série de eventos (exposições, debates, música, cinema, ocupações, intervenções artísticas, caminhadas), como acontecimentos na vida pulsante da Metrópole, de modo algum à parte, antes participante. O seu modo de ser, portanto, não se reduziu ao exclusivamente visual, típico das exposições de arquitetura, antes mergulhou numa multiplicidade de sentidos e sensorialidades, em clave verdadeiramente sinestésica, no qual a percepção intelectual e deslocamento corporal não se separam. E tal ordem de sinestesia seria o próprio da experiência metropolitana da transitividade, do jogo descontínuo entre o fixo e o fugidio, entre o eterno e o transitório, entre a dissolução da experiência na dispersividade contemporânea e a tentativa dramática de reconstituí-la, ainda que apenas por um breve instante. O tema baudelairiano das correspondências surge de modo a articular distâncias e a nos lembrar de que percepção é atenção, mas uma atenção que não impõe interpretação definitiva ou se contenta com a mera imagem superficial. É propriamente um continuo retornar, um perpétuo rodear por diversos meios e vias, sem pretender esgotá-la.
 
Para ver, percorrer, pensar ...


sábado, 9 de novembro de 2013

NIEMEYER III 




A GRAÇA ESTÉTICA DA ARQUITETURA DE OSCAR NIEMEYER*





Lúcio Costa não se cansou de repetir que a obra de Niemeyer traz a "marca inevitável do verdadeiro criador"[1] - sua originalidade decorre certamente da importância atribuída à "expressão artística", numa época em que exigências pragmáticas e "funcionalistas" tendem a sobrepor-se aos valores artísticos. A originalidade de Niemeyer não resulta do gesto gratuito e virtuoso da inovação per si, antes é a manifestação mais forte de um sentimento vital - abertura franca, sem reservas para o exterior, expansão plena do ser a preencher o vazio. Talvez na visão de Lúcio Costa esta seja a nossa singular condição cultural: encarar sem reservas essa situação de tábula rasa que nos persegue desde a data do descobrimento. Niemeyer, mais do que nenhum outro, teria aceitado de bom grado essa condição e procurado tirar dela o máximo proveito.
                O tipo de individualismo que seu trabalho revela é o que se Lúcio Costa qualifica, "genérico e produtivo", representa a afirmação de uma personalidade expressiva alheia à diluição que o processamento técnico do mundo moderno tenta impor. Justificaria-se, assim, a defesa de categorias tradicionais, tais como: gênio, liberdade criativa, invenção, imaginação, para qualificar a obra de Niemeyer, pois estas assumem valor positivo a ser preservado como fatores irredutíveis ao processo de objetivação dominante. Essa idealização funda-se na convicção de que o artista, ostentando uma personalidade vigorosa, excitante e impositiva, poderia expor-se publicamente, isto é, exteriorizar na obra toda expressividade, sem sentir-se esmagado ou constrangido por situações ou forças contrárias, seja a publicidade diluidora do real moderno, seja o poder dissolvente de um espaço monumental.
                As formas extrovertidas de Niemeyer propalam que, aos desígnios de sua vontade o real se dobra. O gesto desimpedido, espontâneo, é sinônimo de ação criativa e explicita a condição de um sujeito que é pura disponibilidade. Afinal, nenhuma contingência, seja o peso opressor de um passado, seja a incômoda instabilidade do presente ou a incerteza do futuro, freia o processo criativo. Qualquer iniciativa será sempre inaugural, haja vista que, nos desenhos de Niemeyer, o País Novo é representado como vazio, superfície intocada à espera de uma ação.
                Plásticas, as formas distendem-se elasticamente numa expansão lenta e confortável. Esforços de tensão, resistência dos materiais, limitações da técnica, imposição geográfica, enfim, nenhum desses fatores transparece na obra - predomina a pureza da forma. Livres das imposições da natureza, os planos ondulantes, as linhas em movimento, os volumes luminosos espalham-se graciosamente sobre a extensão infinita do território. Ao longo de sua produção Niemeyer desenvolveu soluções originais, com destaque especial para as audaciosas estruturas de cobertura, ora completamente vazadas, ora quase totalmente fechadas, todos se caracterizando pela flutuação e flexibilidade. Mesmo em edifícios de mais de um pavimento, onde o volume retangular impõe-se, a sensação de rigidez e compacticidade é atenuada graças a introdução do pilotis, usualmente em forma de "V", que dissolvem o peso mediante o movimento rítmico. Tal sistema reduz pela metade os pontos de apoio no solo e, graças à particularidade de sua configuração (triângulo invertido, cujo vértice recolhe as cargas e as transmite para fundações por um único ponto), temos a impressão que o edifício, apesar do volume grandioso, toca levemente a superfície, apoiando-se delicadamente no solo.
                A preocupação com a leveza revela obviamente a precedência da forma em relação à matéria e aos procedimentos construtivos. Daí que a arquitetura de Niemeyer se construa - conforme nota S.S. Telles[2] - como desenho, colocando sempre em destaque o perfil do volume da edificação. De fato, para escapar das exigências da matéria, a forma só pode erigir-se enquanto pura figura geométrica. O gesto que imprime o desenho sobre a matéria desaparece quando a obra está concluída. À dissimulação da tectônica, se soma igualmente ao que normalmente se vê como o trabalho do projeto. Com aparente facilidade, Niemeyer passaria diretamente do croqui para a construção, tornando desnecessária (pelo menos é o que vemos nas apresentações[3] dos projetos) toda a fase de precisões métricas e funcionais, do longo processo projetual. Nossos códigos de representação convencionais (planta, corte, elevação) parecem dispensáveis, ante a força sintética do desenho à mão livre, capaz de condensar num gesto forma, espaço e estrutura.
Sublimada, a forma se transforma em luz e as forças que tensionam a estrutura acabam dissimuladas pela potência da expressão plástica. Para alcançar a pureza do Belo, Niemeyer constitui uma realidade apartada da contingência e da temporalidade das coisas materiais. As obras, por consequência, fundam o espaço, fazendo com que o ambiente circundante concentre-se totalmente sobre o objeto construído. É, exatamente, tal poder de atração o que dá integridade à forma. Dominando o entorno, os edifícios adquirem inevitável feição monumental. Porém, ao fazer as formas flutuarem sobre o horizonte, Niemeyer confessa sua intenção de evitar qualquer contato que contamine a idealidade da forma. Assentá-las firmemente no terreno seria submetê-las a ação da força de gravidade, admiti-las como entes materiais com peso, matéria, duração e, por conseguinte, finitude.

X

“Leveza”, “graça”, “plasticidade” são os termos usuais para qualificar a obra de Oscar Niemeyer.  Destes, o que mais me interessa aqui é “graça”, talvez o único que possa ser assumido como uma categoria estética, justamente por estar correlacionado ao ideal do belo.
 Senão vejamos: os grandes vãos, os inacreditáveis balanços, as extensas coberturas aéreas, os apoios que mergulham em espelhos d’água, as caprichosas e sensuais curvas das formas esculturais, tudo enfim parece procurar o, a primeira vista, construtivamente inviável, para no instante seguinte, de modo a afirmar a vitória da imaginação e do engenho, logrando êxito e efeito.
As formas sublimam as resistências tectônicas, superam as forças estáticas conduzindo-as a um repouso tranquilo, apagam o esforço da matéria moldada para vencer a força da gravidade, dissolvem o peso na luz alva que ressoa nas superfícies geométricas de perfil nítido e cortante.
Suspensão é o que se costuma caracterizar esta arquitetura que busca um novo desafio técnico, formal, espacial para no momento de sua realização dissimular toda a dificuldade imposta para sua viabilização. Para vencer a inexorável força da gravidade, tanto no sentido físico, como teológico, o arquiteto faz o ato da elevação, da flutuação. Não implantar, afundar , cravar o edifício no solo, mas antes pousar, levitar, suspender. Entre as exigências e as superações do empírico, entre esse desaparecer e aparecer, a arquitetura de Oscar Niemeyer desvela sua graça.
Guilherme Wisnik[4] já apontou essa correlação entre graça e gravidade na obra de Niemeyer por um viés literário, tomando os aforismos poéticos de Simone Weil como estímulo.
A criação é o resultado do movimento descendente da gravidade, do movimento ascendente da graça e do movimento descendente da graça em segunda potência. A graça é a lei do movimento descendente. Descer é subir relativamente à gravidade moral. A gravidade moral faz-nos cair para o alto.
Simone Weil - A Gravidade e a Graça (Martins, 1993)

Apesar dos ecos teológicos, o ponto mais interessante é essa movimentação cruzada entre gravidade e graça, ou em outros termos, entre moralidade e beleza na criação artística. É justamente sobre este ponto que gostaria de me deter, de início, procurando acompanhar historicamente as definições de graça.
A facilidade, a espontaneidade, o desdém pela ideia de trabalho, a dissimulação de toda a técnica são traços conhecidos daquela ideia de arte que aparece sem esforço aparente. Desde O cortesão (1528) de Baltazar Castiglione, no período da renascença, essa fusão entre artisticidade e naturalidade se apresenta como definidor da graça estética. A especificidade do estético que começa a se anunciar nos diz que não se trata mais de uma dádiva momentânea dos deuses a inspirar poetas e heróis gregos, nem a luz divina que cai para abençoar e assim salvar o homem do peso do pecado original, como no conceito da graça cristã ou mesmo neoplatônica.
No renascimento, portanto, a graça começa a ser entendida como uma qualidade que pode ser conquistada pelo estudo e pela cultura. Ao invés de algo que vem do exterior, a graça entendida como forma moral ou estética pode ser objeto de aquisição, seja para tornar mais virtuoso o homem, seja para elevar o processo criativo do artista, na medida em que ele toma consciência de seu modo de ser, de fazer e de agir.
No entanto, graciosidade nunca significou exagero, futilidade, retórica, artificialismo. Ao contrário, quis reagir contra os efeitos exagerados do barroco, defendendo o controle, a precisão e o verdadeiro. Segundo Boileau, em sua L’Art Poétique (1674) a graça poética estaria na construção do verso que equilibra elegância, ritmo, leveza com clareza funcional. 
Começa a se tornar evidente a relação intrínseca que une graça e movimento. Hogarth[5] define  graça como a “beleza do movimento equilibrado”. A famosa linha sinuosa do pintor inglês é quase já a afirmação de um signo formal que vale por si, que agrada pela graça de seu movimento, não mais se sujeitando às regras da proporcionalidade geométrica, na medida em que não delimita, não encerra, sendo tão somente fronteira que conecta, une.
Nesse fluir desimpedido, mas que implica um controle preciso de movimento, estabelece-se a oscilação entre a espontaneidade e a decisão moral que governa nossas ações e movimentos. Quanto mais o movimento aparecer natural e espontâneo, não deixando entrever o ato da vontade, mais gracioso será.  A naturalidade conquistada pela força da vontade consciente é o sinal da dignidade moral do espírito elevado. Não pareceria possível que estas duas categorias pudessem ser compartilhadas, mas esse é o modo como Schiller vincula beleza e moralidade em seu ensaio Sobre a Graça e a Dignidade, de 1793.
Pensando em Oscar Niemeyer, surge a interrogação: o arquiteto efetua a separação entre o plano estético e o plano moral ou suas formas são passíveis de um juízo moral?
Uma primeira distinção que gostaria de fazer é que não compartilho da visão de que a graça em Niemeyer possa significar gratuidade. Apesar das bravatas anti-funcionalistas, a forma exige tanto controle quanto qualquer outra instância, seja prática ou técnica. A meu ver, Niemeyer, a seu modo, compreendeu em Le Corbusier a liberação do signo plástico moderno. Tal como nas manobras cubistas, o signo se libera do vínculo causal com seu referente, estando apto e livre para se desenvolver segundo lógica própria e em tantas possiblidades quanto a imaginação possa dar conta. No caso de Niemeyer, isso significou a liberação da razão da forma de obrigações mecânicas impostas pela função. Mas, o que nas artes plásticas foi compreendido como conquista de autonomia plástica, na arquitetura foi visto como “atitude formalista”.
Não obstante, o formalismo de Niemeyer, se visto pelo viés da forma na sua autonomia, pode receber leitura positiva. A singularidade dessa arquitetura não reside tanto na assunção do signo plástico como estrutura construtiva, daí a sua redução à seção geométrica regular, composição típica do racionalismo europeu, mas como na definição de Hogarth, na afirmação de um signo formal que vale por si, que agrada pela graça de seu movimento: puro desenho, solto, animado, livre.  A beleza no movimento.
Mas a graça espontânea do traço de Niemeyer se obtém com extrema economia de meios. Com gestos sintéticos e contínuos o arquiteto consegue um excesso de forma. Ao excesso se devem as acusações de gratuidade e luxo, à contenção a admiração pela simplicidade e pureza. Outra dicotomia igualmente posta em questão é interior e exterior. Na convenção funcionalista, ambos são ditados por um mesmo termo – a função, ortodoxia de saída negada pelo arquiteto no início de sua carreira. Em Niemeyer passar do exterior para o interior (e vice-versa) parece supor um único e mesmo movimento, denotando um complexo raciocínio topológico deflagrado pelos planos em continuidade (sejam pisos, lajes, paredes e coberturas), cuja percepção decorre na atuação do corpo no espaço. É por isso que se diz que os volumes e plantas de Niemeyer são, tal como numa fita de moebius, exteriorizados, pois não supõem uma interioridade ideal, logo encontram em estado de reversibilidade contínuo. A forma não se decompõe, ao contrário, se reafirma unitária ao longo do movimento.
A beleza no movimento não se reduz, é óbvio, apenas à dimensão das formas plásticas, podendo ser apreendida, por excelência na dança, na qual o mais deliberado gesto parece o mais natural. Também no plano das ações humanas, o perfeito equilíbrio entre vontade e ação, denota uma qualidade superior de beleza moral. 
Niemeyer pode ter aprofundado a cisão entre o belo e o político, visto que este pertenceria ao mundo do trabalho, do mundo pesado da desigualdade e dos embates sociais, mas a integridade de sua atitude artística é clara e enfática. Por isso, a arquitetura de Niemeyer dá a impressão de habitar um lugar ideal, no qual as tensões são pacificadas e as formas encontram um lugar natural. Tal idealidade assinala, é inegável, um desacordo profundo com o presente conflituado, ponto de contato com os ideais progressistas da arquitetura. De fato, elas apontam para uma inevitável utopia no qual todos teriam participação e acesso ao Belo.
Ainda que por um instante, as coisas que o homem moderno constrói, nossos corpos e a natureza pareceriam encontrar-se em correlação pacífica e proporcionada. 


* texto publicado originalmente no site Vitruvius  na sessão "Tributo a Niemeyer":
KAMITA, João Masao. A graça estética da arquitetura de Oscar Niemeyer. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 151.07, Vitruvius, dez. 2012 <http://www.vitruvius.com.br/.../read/arquitextos/13.151/4631>.



[1] COSTA, L. Muita construção, alguma arquitetura e um milagre. In.- Arte em Revista 4. São Paulo, CAC, 1983.
[2] Afirma Sophia S. Telles:“... sua imaginação se quer livre de toda contingência. São formas que se querem naturais que a elas cabe apenas a contemplação.” Dissertação de Mestrado. São Paulo, Fac. de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas/USP, 1988, op.cit. p. 83.
[3] Esse modo de exposição do processo criativo da arquitetura tem, a meu ver, muito de retórica, no sentido de uma estrutura argumentativa elaborada, segundo fins comunicativos específicos. Merece, inclusive, um estudo mais aprofundado.
[4] Ver “Oscar Niemeyer: Intuição Trágica e Repouso”. In.- WISNIK, G. Estado Crítico: à deriva nas cidades. São Paulo, Publifolha, 2009, pp.-180-185.
[5] A esse respeito, ver “As ideias artísticas de William Hogarth”. In.- ARGAN, G.C. A arte moderna na Europa: de Hogarth a Picasso. São Paulo, Cia das Letras, 2010, pp.- 47-60.       

segunda-feira, 4 de novembro de 2013


NIEMEYER II

 

NIEMEYER-BURLE MARX  e a lírica da paisagem.

O caso da Residência Edmundo Canavelas

 
Residência Edmundo Canavelas - Oscar Niemeyer

Residência Lota Macedo Soares - Sergio Bernardes


Apesar da apropriação indébita feita pelo filme “Flores Raras” da Casa Edmundo Canavellas, deslocando a autoria do projeto e atribuindo-lhe outro endereço, confundindo ainda mais o público, do ponto de vista estritamente arquitetônico, essa confusão entre as duas residências e seus respectivos autores não deixa de ser totalmente infundada. O parentesco formal e construtivo entre as duas residências é fato, assim como é sabido que o jovem Sérgio Bernardos à época estava muito próximo de Oscar Niemeyer, tendo inclusive trabalhado no escritório deste no início da carreira. Tal proximidade se evidenciava na troca ocorrida entre projetos do início da década de 1950. Se Sergio Bernardes se revelava o mais talentoso herdeiro da primeira geração de arquitetos modernistas com obras claramente debitarias do partido e do vocabulário carioca em diversas residências do final de década de 1940 e início da década de 50 como a Residência Jadir de Souza (1951) e o Conjunto Sanatorial de Curicica em Jacarépagua (1948-50), na casa de Lota Macedo Soares (1951-53) em Samambaia/Petrópolis há claros sinais de experimentalismos na conjunção inesperada de sistemas construtivos distintos: o industrial e o rústico. Nesta casa de campo, Sergio Bernardes utiliza processos de padronização típicos da construção industrial, evidentes na estrutura de treliças e pilares metálicos, na cobertura de telhas onduladas de alumínio e nos grandes panos de vidro. Porém, o lado arcaico se mostra nos muros de pedra, nas paredes de tijolo à vista e no revestimento dos pisos e nas venezianas da ala dos quartos.

A casa tem pouco daquela atmosfera doméstica e intimista, assumindo um tom urbano e cosmopolita, bem ao estilo de sua proprietária. Isso se reflete no núcleo social concebido como um misto de local de estar e galeria de arte, em franca interação e abertura com a paisagem ao redor. Se o arranjo espacial seguia o partido típico das residências modernistas daqueles anos - uma planta aberta com organização em T, em cujo centro está o núcleo social e serviços e nas extremidades os setores íntimos – há certa mescla de informalidade geométrica e ascetismo puritano que traem certa influência da arquitetura americana daqueles anos, o que de certo modo assinala uma espécie de recusa do jovem arquiteto ao idealismo estético em favor de uma atitude mais direta na abordagem do projeto e da construção.



 

Em princípio, Niemeyer parece ter assimilado esse experimentalismo construtivo de Sérgio Bernardes na Casa Canavellas (1954-55), ao introduzir elementos um tanto estranhos ao seu vocabulário. Refiro-me obviamente à incorporação da treliça metálica e dos apoios de pedra nos 4 cantos do perímetro.  Ponto interessante é a exploração dos materiais: pedra, telha de alumínio, liga metálica, forro de madeira, vidro. Explorar técnicas e materiais de construção não é o procedimento muito usado pelo raciocínio de Niemeyer. A poética dos materiais é incomum à plástica formal.

Mas a novidade era esse sistema conjugado à um plano curvo de cobertura, esse sim um elemento familiar a Niemeyer, contudo, incomum à gramática de Sergio Bernardes naqueles anos. Ali a viga treliçada funciona tensionada, por força da catenária, razão pela qual os pilares de pedra assumirem uma configuração distinta do usual em Niemeyer, mais pesada de um triângulo retângulo, cuja hipotenusa é curva, tendo a base cravada firmemente no chão e o vértice o ponto de articulação com a treliça. A rigidez dos apoios contrasta com a leveza da cobertura.

O tema da cobertura curva aparece timidamente na Residência Jadir de Souza, mas será definitivamente incorporada e explorada no Pavilhão da CSN no Parque Ibirapuera de 1954, no Pavilhão do Brasil na Exposição Internacional de Bruxelas (1958) e no Pavilhão de São Cristóvão (1958-60). Já Niemeyer parece não ter dado mais continuidade à esse experimentalismo construtivo e o mesmo se poderia dizer com esse tipo de cobertura e sistema portante (apesar de ter retornado alguns anos depois na igreja Nossa Senhora de Fátima, em Brasília).

Mas esse movimento só nos convence de que o diálogo entre os dois arquitetos era vivo e instigante. Como vimos no caso do Auditório do Edifício Manchete, Niemeyer não era avesso nem muito menos imune à influência de outras arquiteturas. Ao contrário da mitologia que se construiu em torno do “mestre” – genial inventor, absolutamente original – Niemeyer apenas demostra deter cultura arquitetônica e que todo projeto é uma conversa com tantos quantos projetos que se tenha vivido e experimentado, seja de que modo for.

Feitos estes esclarecimentos iniciais, vamos às considerações específicas sobre a residência Canavellas.

 

X

 








O caminho de acesso, em suave inclinação, se faz numa das encostas que forma o vale. Assim, desde o percurso inicial, o projeto indica o eixo espacial dominante da paisagem. Atravessamos de ponta a ponta a extensão da propriedade e por entre as árvores do caminho vislumbramos abaixo o plano marcante da cobertura da construção. Na extremidade oposta à entrada de acesso, fazemos o retorno em cota mais baixa e finalmente divisamos, em sentido inverso, a casa interceptando a profundidade do espaço. O vale agora surge como um ambiente acolhedor, suas altas encostas amparam e protegem. Seguindo em direção à residência, vemos a quadra, a piscina, o jardim geométrico.

A arquitetura se implanta estrategicamente em sentido transversal ao vale. Ela se resume a uma ampla e extensa cobertura curva apoiada em 4 grandes pilares de pedra Cerca de três quartos da casa é reservado ao setor social, vazado e transparente. A intenção é clara: não impedir a continuidade do espaço. Tanto que, ao modo de um Mies Van der Rohe, uma parede de pedra que delimita a área de estar, isolando o setor dos quartos, cozinha e de serviços, continua seu movimento, avançando, solta, em direção ao jardim geométrico. O contraponto é a fileira de palmeiras imperiais inserida entre o gramado e o caminho de entrada.
 


 


 

 Esse muro de pedra atua como um direcionador perceptivo, que antecipa e acelera a vazão espacial, canalizando-a para o outro lado da casa.  Ao atravessá-la, percebemos a mudança de configuração do jardim: o motivo em xadrez cede vez para formas orgânicas, verdadeiras massas curvilíneas se expandindo em tons contrastantes de lilás e amarelo esverdeado, ressoando contra a superfície verde do gramado. Este setor se distingue pela inclinação do terreno, que se move em ondulações, em franca concordância com as linhas do jardim. O segmento seguinte suave e tranqüilo, dominado pelo lago de contornos orgânicos de um lado e em livre desenvolvimento, na outra margem, sem aquela formalidade orgânica e abstrata do setor antecedente.
 


 

A busca de uma interação com a paisagem é o nexo dominante deste projeto de Niemeyer-Burle-Marx. O partido arquitetônico define-se num gesto básico: implantar a casa em sentido transversal ao eixo longitudinal do vale, dividindo-o em dois setores (na verdade em três se considerarmos a parte do lago). A conjunção ambiental se deflagra pela curvatura invertida do plano da cobertura que assim faz ressoar a concavidade do vale.  
 
O partido paisagístico qualifica e potencializa a setorização imposta pela secção do lote que o projeto arquitetônico produz. No lado do acesso à casa se localizam a piscina e a quadra, ou seja, as atividades reservadas ao lazer e ao esporte. Nesse lado, o paisagismo de Burle-Marx introduz um padrão de desenho ortogonal, definindo uma malha xadrez no gramado que cerca a piscina. Além disso, seguindo a guia dos quadrados, introduz arbustos bicromáticos em duas faixas em alinhamento alternado e uma fileira de palmeiras imperiais no limite que separa o gramado do caminho de acesso. Também foram plantadas árvores frutíferas nesse setor.





 No lado posterior, como vimos, é a curva que determina o desenho do jardim. O gramado em retícula estruturava área anterior, agora atua como plano genérico, contra o qual se elevam arbustos que formam ondas curvilíneas de tons intensos e irradiantes. Um conjunto bicolor (lilaz e verde amarelado) mais compacto se concentra no ângulo que define o contorno do piso de base, na base do pilar da parte dos quartos. Outra faixa tem tonalidade única (lilaz) e se desenvolve em curso ondulante em direção ao lago. Entremeando estes dois planos, massas arbustivas completam o jardim. Uma delas em particular se eleva, criando um interessante contraponto vertical à horizontalidade dos arbustos. Ao contrário do que se poderia supor, o caráter pictórico do paisagismo de Burle-Marx acata e explora as sugestões do terreno, bem como opera com massas volumétricas, não se reduzindo a simples transposição do desenho bidimensional no jardim. O prolongamento do terreno é ocupado pelo lago de contornos sinuosos, seguindo até o limite da propriedade. Mas quanto mais avançam mais diluídos seus contornos vão se tornando, tanto que uma de suas margens encontra diretamente a base da encosta preenchida pela floresta.  

Já a casa é concebida a partir do desenho da cobertura em meio à exuberante cadeia de montanhas ao redor. Trata-se de um procedimento típico ao partido de Niemeyer: definir o projeto pelo perfil de cobertura. Apesar da amplitude desse teto curvo, os ambientes internos são cômodos e bem proporcionados. Tal como na Casa das Canoas, os quartos e a cozinha são de dimensões modestas, para não dizer intimistas. A planta é de fato relativamente reduzida porque seu perímetro não coincide com a projeção da cobertura. A sala de estar é estreita em relação ao setor íntimo e de serviços, dando movimento à planta, mas este estreitamento serve para liberar a área de varanda. O fechamento é predominantemente de painéis de vidro no sentido do comprimento, os dois opostos são pesadas paredes de pedra: uma explode a planta rumando para o jardim em movimento horizontal; a outra, que acolhe a lareira, em sentido vertical vasa o telhado. Ao seu redor forma-se uma faixa de piso de pedra portuguesa que funciona como um grande avarandado, expandindo a área de uso da sala. Aqui o exterior participa diretamente da casa.
 





 

Duas questões se colocam diante das decisões de projeto, tanto o arquitetônico, como o paisagístico. Se o plano curvo de cobertura leve e aéreo é uma forma conhecida do repertório de Niemeyer, o mesmo não se pode dizer dos insólitos pilares de pedra de formato triangular com hipotenusa curva. Outro detalhe incomum é a curiosa “treliça” metálica de secção quadrada que apóia a cobertura de telhas de amianto. Qual o sentido dessa estranha combinação de materiais e sistemas de suporte?

            Quanto ao projeto de Burle-Marx, que sentido poderia ser atribuído a essa contraposição entre o geométrico e o orgânico no jardim?

Poderíamos começar dizendo que da parte de Niemeyer poderia ser uma espécie de flerte com a poética brutalista (como vimos acima, Sérgio Bernardes irá levar essa via experimental na radical casa de Lota Macedo Soares). Mas isso parece pouco em se tratando de um arquiteto que faz de sua auto-confiança o vetor de sua experimentação plástica. Da parte de Burle-Marx, poderíamos dizer que se trata de uma resposta ao programa, um fator de diferenciação entre um jardim social e de lazer e um jardim contemplativo. O paisagista foi extremamente econômico na seleção das espécies vegetais (pouco mais de 7 espécies), mas aplicados com um sentido preciso e calculado. Reduzidos a puros elementos plásticos, ou seja, as espécies individuais ou agrupadas se convertem em efetivos elementos construtivos, ou seja, autônomos, não tanto por se reduzirem a condição de formas pictóricas (como se o jardim fosse simplesmente uma tela pintada) apagando sua condição de tipos botânicos, mas sobretudo por se revelarem em seu ser formal. O que significa individualizar seu contorno formal puro.



 Muito embora muitos a vejam como uma tenda suspensa, não me parece a comparação mais apropriada. Afinal, não se trata de uma superfície tênsil (uma membrana tensionada) cujos esforços se dão mais por tração e elasticidade, ou pela relação entre curvatura e protensão, daí o uso de cabos e mantas ou cascas trabalhando em conjunto, mas de um plano apoiado em vigas e pilares, isto é, as telhas de aluminio são colocadas sobre uma malha estrutural fixa (esta sim operando por tração), sem portanto participar do sistema de esforços portantes. E o arquiteto é o primeiro a afirmar que desejava criar um contraste entre o peso dos pilares em contraposição à leveza da cobertura.

 Minha impressão é de que a casa foi concebida como um pórtico, ou mais precisamente, como um portal que viabiliza um rito de passagem. É possível imaginar que desde o portão de acesso acima, seguindo pelo caminho descendente até retornar e vislumbrar a casa entre o vale, o arquiteto e o paisagista estejam já efetuando uma mudança de registro do regime de sensibilidade daquele que para lá ruma, justamente um habitante da metrópole. Gradativamente o “citadino” adentra num ambiente dominado pela paisagem natural. Através desse percurso o arquiteto arma uma reversão e o que no princípio víamos como frente, ao seguir o caminho e retornar se revela fundo. Por isso, logo na entrada da casa, ao contrário do se poderia esperar, localiza a parte do lazer com piscina e quadra. A geometria do jardim confirma que as atividades ali desenvolvidas estão em continuidade com o setor social da residência, portanto, ainda regidas por valores de convivência urbana. O ponto de interpolação é a sala de estar e o limite que anuncia a mudança de registro da sociabilidade urbana para o exercício contemplativo da natureza é justamente o plano opaco, que situado entre dois panos de vidro completa a vedação da sala, no lado que dá para o lago.

Registro similar parece também explicar que o uso híbrido de técnicas e materiais também opera o trânsito entre o artesanal e o industrial, ou mesmo, entre o aéreo da cobertura suspensa e a massa dos 4 pontos de apoios. E nesse sentido sua razão de ser seria poética, antes que meramente construtiva.

Essa passagem entre cultura e natureza e vice-versa, dá a nota do projeto modernos da arquitetura brasileira do período. Niemeyer e Burle-Marx/arquitetura e paisagismo parecem afirmar que à Arte cabe estabelecer essa continuidade tranquila e prazerosa e quando temos em mente que num país que no plano retórico mistifica as belezas naturais, mas cuja história é de exploração violenta da Natureza, esse projeto ganha especial beleza e lirismo.  

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Praça das Artes – Brasil Arquitetura

 
Vista da rua Formosa - Vale do Anhangabaú

 
Fachada incorporado do antigo Cine Cairu e, na esquina, o
Edifício de Giancarlo Palanti

Inaugurada neste ano, na cidade de São Paulo, a Praça das Artes tem um modo de presença incomum. Uma forma – sim, forma -  expressiva que tira proveito do dispersivo, das justaposições abruptas, do aproveitamento parasitário dos espaços disponíveis. E o faz de maneira intencionalmente enfática, anunciado diretamente pela sua materialidade inesperada em aparente desacordo com a disposição lógica dos elementos da construção.
Uma articulação meio labiríntica, meio informe, logo, uma forma flagrantemente urbana.










Concebido como um complemento ao Teatro Municipal, a Praça das Artes incorpora o conservatório de música, mas expande exponencialmente o programa ao incluir escola de música, escola de dança e centro de documentação musical, bem como as sedes dos corpos artísticos do teatro (orquestra, quartetos de cordas e corais).

O complexo da Praça das Artes tem na sua implantação um dos pontos chave do projeto. Trata-se de uma ocupação do miolo de uma quadra, formado pela conjunção de vários lotes que se aglutinam e que tem saída para três das quatro ruas que a cercam (Rua Formosa que ladeia o Vale do Anhagabaú, a Avenida São João e a Rua Conselheiro Crispiniano). Trata-se de um lugar absolutamente central, tanto pela sua localização histórica onde praticamente a cidade de São Paulo surgiu, como por estar voltado para uma das áreas públicas mais conhecidas da cidade: o vale do Anhanbaú, entre os viadutos do Chá e Santa Ifigénia. Além do Teatro Municipal, com a praça Ramos de Azevedo coligada, a área concentra uma série de edificações destacadas: a sede da prefeitura, o edifício Conde de Prates de Giancarlo Palanti, o edifício dos Correios, o edifício Mirante do Vale de Zarzur e Kogan, o edifício Martinelli, o Mosteiro de São Bento, o edifício do BANESPA.

Apesar de sua situação impar, o local encontrava-se degradado, como de fato, todo o entorno. Lidar com essa espacialidade negativa, irregular, cercada de sobras e acumulações desregradas e comprimidas, enfim, encarar essa condensação de dificuldades buscando incorporá-las ao projeto revelou-se a principal decisão do projeto. 

Contra a tendência de subdivisão tradicional do lote urbano em porções individuais regulares, gerando construções coladas umas as outras, com frente para a via pública e sobras irregulares aos fundos – modelo por excelência da quadra fechada – o projeto transforma aquilo que comumente seria residual em princípio ativo do espaço, assim, desafia o padrão histórico do desenho das cidades que relaciona arquitetura e malha urbana. Ocupar as entranhas da quadra para daí facultar o acesso e o usufruto público, eis o princípio definidor do partido. Esgueirando-se pelas sobras negativas dos terrenos, o complexo aparece, desaparece e reaparece para a rua, contorna, envolve e percorre lugares imprevistos. Nesse verdadeiro ato antropofágico, incorpora duas construções existentes e abandonadas: o Cine Cairo e o antigo Conservatório Dramático Musical de São Paulo. De fato, efetua um verdadeiro atravessamento da quadra, quebrando as barreiras físicas e ideológicas da propriedade privada. O eixo dominante é o que corre no sentido do Vale do Anhangabaú-Rua Conselheiro Crispiniano, por onde o espaço escoa sem impedimentos no nível térreo. Do mesmo modo, essa abertura ocorre no acesso da Avenida São João, no qual o volume suspenso libera totalmente o acesso, constituindo-se assim numa verdadeira praça coberta.

Vista da Avenida São João com a fachada do Com-
servatório.e na sequencia o edifício Seguradoras, de
Oscar Niemeyer





 Praça coberta com vista para o vale do Anhangabaú
 



Os blocos programáticos são distribuídos ao longo desses 3 eixos, voltando-se para a rua Formosa e para a Avenida São João. Na intersecção localiza-se a torre administrativa e de apoio, ponto de referência junto com o pavilhão das escolas e restaurante, dos quais partem os “tentáculos” programáticos e volumétricos do edifício dos corpos artísticos, do centro de documentação e das salas de ensaio. Ligações diretas são efetuadas por tuneis passarelas: a que liga o restaurante ao aos corpos artísticos, o que conecta a torre ao pavilhão e o que segue rumo à Rua Conselheiro Crispiniano (que é um túnel-pavimento para ensaios). Esses três elementos são espécies de vetores direcionais do atravessamento do espaço.
 
 Vista da Rua Conselheiro Crispiniano

 
 
 
 

A Praça das Artes, em um primeiro momento, afirma um modo de ser que contraria as construções existentes com sua disposição intrusa, quase parasitária pelos interstícios do quarteirão. O padrão do edifício isolado com volumetria unitária e monolítica típicos do modernismo ou o padrão eclético com base, corpo e coroamento dispostos a partir de eixos de simetria (complementado pelas colunas e ornatos) parecem avançados no tempo em relação ao primitivismo do conjunto da Praça das Artes.

Por isso, a meu ver a opção de atribuir ao célebre concreto aparente brutalista, ao invés da secção rija e dura, a consistência mole da “taipa”, com a marca dos pranchões de madeira. Daí, a necessidade de passar a impressão de um plano não subdividido em pavimentos, algo que normalmente ocorre pela marcação rítmica dada por lajes, parapeitos e fenestração, reveladores do “empilhamento” de camadas horizontais de espaço. Na Praça das Artes, a sensação deveria ser de um muro único, como os das igrejas coloniais. Daí o misto de aparência musgosa e terrosa, o cinza do concreto aparente o ocre da argila. Assim, vão regulares surgem nos planos de fechamento, de fato como pequenas perfurações num todo cheio e consistente a partir de uma rítmica aleatória.





A forma contrastante com que a Praça das Artes se mostra se deve a sua aparência arcaica, tanto em relação aos palacetes ecléticos do início do século como antigo Cine Cairo e o antigo Conservatório Dramático Musical, quanto dos ilustres vizinhos modernistas: o edifício CBI Esplanada na rua Formosa, projeto de Lucjan Korngold, o edifício Seguradoras, na Av. São João,  de Oscar Niemeyer. As fachadas antigas foram não apenas restauradas, mas purificadas pela pintura branca, o que radicaliza a sua contraposição com o concreto aparente dos blocos ao redor, resultando em puros planos ecléticos. Mais exatamente um écran  superficial. Já a diferença com as torres modernistas se revela no contraste entre valores opostos: transparência e opacidade.

A presença marcante da Praça das Artes se dá de um modo paradoxal: é uma forma sem forma, uma arquitetura anterior a era da arquitetura, uma materialidade pretérita, primitivista mesmo. Curiosamente essa condição pré-construtiva é o que faculta o inesperado entendimento com a condição desgastada, deteriorada mesmo das banais edificações limítrofes. E aí sua lógica de ocupação e tratamento de superfície se demonstrar inclusiva e adaptativa ao incorporar as incongruências do lugar, não rompendo, portanto, com o contexto no qual se insere. Nesse sentido, o projeto se mostra menos projeto de edificação do que projeto de paisagem.



 




Não há como não atentar para esse lado expressivo do projeto, o estranhamento pela introdução de tais elementos incongruentes num meio de densa urbanização. Não há como não se remeter, quase num exercício surreal de rememoração de um tempo perdido, das primeiras ocupações da modesta vila de São Paulo da Piratininga a partir do triângulo religioso (Sé, São Bento e São Francisco) original e a expansão pelo eixo da Avenida São João atravessando o vale do Anhangabaú, com seu terreno alagadiço e com suas chácaras e plantações, com os primeiros calçamentos de terra batida e pedra e construções coloniais de paredes caiadas e grandes beirais. Não há como não atentar para as condições rústicas da primeira urbanização quando a construção e a paisagem bruta ainda se encaravam de igual.

Esse jogo inesperado do moderno e do arcaico, essa simultaneidade de temporalidades distintas, deve muito à poética de Lina Bo Bardi, cujo estranhamento era estratégia assumida para iluminar e abrir perspectivas inéditas. Esse procedimento estético não é estranho a alguém como Marcelo Ferraz, um dos autores do projeto, que trabalhou durante muitos anos com a arquiteta. Há todo um conjunto de projetos do escritório Brasil Arquitetura em que se percebe o transito entre o atual e o vernacular, ou mesmo a tradição construtiva popular, em especial casos de requalificação de estruturas existente. No entanto, sempre no limite de certo ecletismo construtivo. O que surpreende na Praça das Artes é o rigor e a radicalidade do projeto, o que me parece lhe confere certa vitalidade contemporânea.

Nesse ponto, o tema é inevitável: a questão da herança e da influência. Como o herdeiro assume, recolhe e propaga um legado? Como não se tornar subserviente, verdadeiramente sufocado pela força intimidadora da obra anterior a que se pretende ser fiel?

Tais são os dilemas da “Angustia da Influência”, célebre livro de Harold Bloom que trata da influência poética e do diálogo verdadeiramente bélico entre poetas, quando um poeta posterior distorce a leitura do poeta precursor, efetuando aquilo que o autor chama uma “má leitura” do texto original. Ou seja, efetuando um salto criativo que faz com que a influência deixe de ser simplesmente “uma transferência de personalidades” para se tornar um “poeta forte” com personalidade própria. Bloom esboça alguns “movimentos revisionários” de como o poeta se desvia da influência de outro.

- Desvio corretivo, quando é preciso encontrar na obra anterior um defeito que não está nela e daí corrigí-la;

- Completude por antítese, quando o poeta posterior isola um fragmento da obra anterior, retendo-o a seu favor para leva-la para outro caminho, como se o precursor não tivesse ido longe o bastante;

- Descontinuidade, quando opera o esvaziamento do antecessor, que é claro é sempre relativo;

- Despersonalização generalizante, quando atribui à obra fundadora o caráter de representação de certo estado geral, relativizando portanto o valor unitário do autor original;

- Retorno, quando já no final de sua carreira o poeta que vem depois se mostra de novo aberto à obra do precursor de tal modo que pareceria que o poema do precursor teria sido escrito pelo da posteridade.

Estas categorias evidentemente não esgotam as possibilidades de debate poético entre obras e artistas, mas servem de começo para se avaliar a fundo as possibilidades de “desleituras criticas” produtivas.