segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Rio 2016 - Arquitetura do empreendedorismo estético


RIO 2016 – a arquitetura do empreendedorismo estético*

Resultado de imagem para parque olimpico na barra 



Se até as Olimpíadas de Los Angeles de 1984, o esporte ainda se alinhava simbolicamente com as disputas nacionalistas e/ou disputas ideológicas entre o bloco capitalista e o socialista, após a queda do Muro de Berlim, em 1989, o cenário se alterou e os jogos logo entrariam na Era da Globalização. Nesse novo estágio, os jogos de Barcelona de 1992 se impôs como paradigmático. O sucesso do empreendimento transformou a cidade catalã e sua imagem tornando-a um centro turístico atrativo e sedutor, singular em sua história e cultura e ao mesmo tempo cosmopolita em sua modernidade e inovação.

O momento espanhol era extremamente positivo, conjugava dois fatores fundamentais:  a redemocratização do país após a queda do regime de Franco e o crescimento econômico após a integração na comunidade europeia. Após longo período de decadência, a cidade viu a oportunidade de recuperar vitalidade com o projeto olímpico.

Em termos de gestão urbana, o modelo adotado se inseria já dentro das políticas neoliberais inauguradas na década anterior com o encolhimento do papel do estado na regulação e condução de políticas públicas, inclusive com corte no repasse de verbas federais para estados e municípios. O próprio Comitê Olímpico Internacional (COI) precisou se adequar às novas políticas, aproximando-se igualmente do mercado com uma estratégia mais agressiva de marketing com as grandes empresas esportivas, e transformando os jogos em um evento midiático global. Assim o esporte se tornava espetáculo assistido por milhões de espectadores.

Do ponto de vista que nos importa – a do planejamento urbanístico – a ação dos administradores públicos e dos urbanistas catalães abrangeu a cidade como um todo, que desde a década anterior já tinha elaborado um Plano Diretor, dando  base às ações planejadas que consistira na recuperação do centro histórico, na revitalização da área do porto, na criação de novas centralidades, na melhoria do sistema de infraestrutura de transporte, na construção de grandes edificações esportivas e culturais e no investimento forte nas novas tecnologia, sobretudo, as de comunicações pela expansão da rede de fibras óticas.

Das edições subsequentes dos jogos, cabe destacar duas em particular: Pequim 2008 apostou suas fichas na grandiloquência de suas principais intalações, o Cubos d’água e o  Ninho de Pássaro; Londres 2012, ciente do início da resseção mundial assume uma postura objetiva e realista e retoma o modelo de Barcelona de valorização da cidade (e não de sua arquitetura espetacular) e da preocupação com o equilíbrio social. Os contrastes entre os projetos de Pequim e Londres são evidentes: um, regime comunista que censura a liberdade de expressão, decide exibir sua modernidade e poder investindo na ostensiva (e custosa) retórica arquitetônica desenhada pelo Star System da arquitetura contemporânea; outro, um governo de esquerda rebaixa o monumentalismo arquitetônico para valorizar a dimensão social do legado. A decisão de locar o Parque Olímpico na parte leste de Londres, no bairro industrial de Stratford, zona proletária pobre e desassistida em relação à City e a parte oeste, exprime claramente a intenção de reequilibrar o tecido urbanístico e social, favorecendo as camadas populares e segregadas da área periférica da cidade. Evidentemente que a avaliação do legado londrino ainda está por ser realizada, mas o que nos interessa na comparação Pequin/Londres são os modelos adotados e como o projeto olímpico da Rio 2016 dialoga com estes tendo novamente como paradigma o caso de Barcelona 1992.

A candidatura do Rio se apoiava no bem-sucedido Pan de 2007, e reaproveitou parte desta infraestrutura para as Olimpíadas 2016, em seus três polos principais: Barra da Tijuca concentrando a maioria das arenas e a vila olímpica, o estádio do Engenhão e o complexo de Deodoro.

Neste ponto já notamos a diferença para com o projeto social de Londres, na medida em que ao reiterar o foco sobre a região da Barra, reproduz e intensifica o sentido dominante do crescimento imobiliário que vem ocorrendo na região urbana do município. A grande concentração de intervenções na zona sul da cidade complementa o programa traçado de fortalecer as centralidades já existentes.

O projeto urbanístico vencedor do concurso organizado pelo IAB-Rj foi o do escritório inglês AECON, o mesmo que fez o Parque de Londres. Na península triangular se implantam as principais modalidades esportivas, bem como o centro de transmissão e a vila da mídia, áreas de lazer e estacionamento. Uma ampla via sinuosa corta o terreno no meio, concentrando a maior parte das instalações esportivas na parte leste, na oeste apenas as arenas de natação e tênis. A razão desse partido é liberar a área após o evento para dar lugar à construção de edifícios de apartamentos, e assim converter o parque em bairro residencial de alto padrão, o mesmo ocorrendo com a Vila dos Atletas nas proximidades. As opções são claras: o usufruto pós-jogos será da alta classe média carioca.

Em termos de arquitetura, a do Parque Olímpico é quase indiferente: impressiona num primeiro olhar, mas esgota-se rapidamente. As arenas buscam, cada qual ao seu modo, uma expressão diferenciada, mas não alcançam a singularidade espetacular das arquiteturas de Herzog & De Meuron ou de Zaha Hadid para Pequim e Londres. Nada parece expor melhor esse desejo frustrado que os interiores das arenas, todos padronizados pelas regras impostas pelos comitês e confederações e pelo marketing olímpico. O projeto urbanístico é mais “caprichoso” no desenho de pisos e paisagismo, os pavilhões são imensos e, em certo sentido genéricos. A arquitetura do espetáculo, de fato, ficou guardada para a Praça Mauá.

A revitalização da zona portuária não estava contemplada nem no projeto do PAN nem no documento de candidatura das Olimpíadas, mas foi incluída posteriormente como estratégia da expansão comercial e cultural do centro histórico do Rio. O estágio de abandono dos grandes armazéns do cais e a deterioração dos antigos bairros da Gamboa, Santo Cristo e Providência reiteraram a importância e a urgência de intervir na área, dando origem ao projeto PORTO MARAVILHA. Primeiro, promoveu-se uma mudança na legislação do uso do solo liberando o gabarito e a densidade de ocupação da faixa ao longo do porto, estabelecida sob o regime das parcerias público-privada para viabilizar os recursos para financiar as obras de renovação. O mecanismo adotado foram as CEPACS - Certificados do Potencial Adicional de Construção -, títulos para financiamento das Operações Urbanas Consorciadas. A nova lei define um aumento do potencial de construção para ser explorado por empresas privadas através da compra das CEPACS. O dinheiro da venda seria então revertido para custear as obras e serviços da renovação urbana da área.

 O elo de ligação, e, portanto, de continuidade entre o tradicional centro histórico e de negócios do Rio e a renovada zona portuária se localizou na Praça Mauá. Ali arte, arquitetura e paisagismo encontraram o seu grande palco. Nenhuma outra intervenção exprime melhor a ideia da cultura do espetáculo que a Nova Praça Mauá (incluindo-se, é claro, o Boulevard Olímpico e a Orla Conde) com seus equipamentos culturais (museus, monumentos históricos, equipamentos e áreas de lazer) e vista deslumbrante para a baia de Guanabara, consequência da demolição do elevado da perimetral que seccionava a área.


A região da nova praça é, em certo sentido, a síntese das aspirações da cidade do Rio de Janeiro pelos grandes eventos. Árida e abstrata, a nova Praça tem por função se colocar como palco de chegada dos transatlânticos turísticos e mirante de contemplação da paisagem da baía. As duas instituições culturais – O Museu do Rio de Janeiro e o Museu do Amanhã – evidenciam a contradição fundamental do projeto de cidade do urbanismo olímpico. O MAR representa a conciliação do passado com o presente: o palácio eclético e o edifício modernista unidos pela jocosa cobertura sinuosa. A história do Rio de Janeiro é o seu conteúdo, por isso toma como partido curatorial expor as singularidades da cultura, do passado, da vida carioca. O Museu do Amanhã representa o voo para o futuro, essa promessa de redenção trazida pelo novo ciclo de prosperidade. Com sua arquitetura espetacular, ele é a expressão da linguagem internacional, lugar de todas as línguas, sotaques e idiomas. Essa arquitetura poderia estar em qualquer localização pois o seu usuário-tipo é o turista. O ponto em comum entre os dois museus é a abertura para a deslumbrante paisagem da baía da Guanabara.

Por fim, o Parque Olímpico de Deodoro, construído na área militar, recebeu novas instalações para as competições menos divulgadas como canoagem, tiro, hipismo, ciclismo, montaim bike e outros, com a promessa de legado que a área se converta num grande parque de esportes radicais e de lazer para a população da região. O complexo de Deodoro é o que tem menos evidência na cobertura da mídia, embora se encontre na área de maior densidade habitacional da região metropolitana do Rio.



Os Jogos ocorrerão em 4 regiões da cidade: Barra, Deodoro, Maracanã e Copacabana. Logo a conexão entre tais núcleos se tornou prioritária no projeto olímpico da cidade. Uma série de alternativas foram abertas para implementar a mobilidade urbana como a expansão do metro com a linha 4 e introdução do sistema de ônibus rápido (BRT) e veículos leves (VLT). Acrescente-se os investimentos na área de segurança pública (apesar da crise atual do Estado), que começaram muito antes com a implementação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), em vista da preparação para outro grande evento que antecedeu as Olimpiadas: a Copa do Mundo de 2014.

O discurso oficial da administração municipal não cansa de afirmar que o custo das obras foi financiado em grande parte pelo capital privado pouco mobilizando a verba pública. Esse modelo de gestão ficou conhecido como o novo empreendedorismo. Se a parceria com a iniciativa privada se justifica pela agilidade, flexibilidade e mobilidade, fatores que a burocracia do estado não consegue ultrapassar, o que fica em suspenso (intencionalmente, eu diria) é o papel da autoridade pública. Na retórica oficial tudo se sintetiza em uma palavra: legado. Melhoria na mobilidade urbana, criação de novos empregos, acréscimo de áreas públicas, atração de investimentos, visibilidade internacional. Porém não só de promessas de futuro se alimenta a retórica oficial, outra mais perniciosa, reiteradamente acionada, foi a de, em nome dos prazos exíguos e da necessidade das obras, invocar argumentos de “força maior” para justificar e implementar as mudanças: decisões não passíveis de discussão e avaliação, mecanismos legais de dispensa de licitações, verbas adicionais invocadas, alterações súbitas no projeto-base, enfim, um conjunto de deliberações tomadas entre as instancias (administração pública, FIFA, COI, COB, empresas patrocinadoras) sem participação da sociedade civil configurando um processo obscuro e arbitrário. Apenas para dar alguns exemplos, tomemos incialmente o caso da linha 4 do metro. Até agora não houve uma explicação razoável (técnica, econômica ou política) para a adoção do trajeto único e linear, atravessando meia cidade. A lógica do sistema de metro predominante se define por um conjunto de linhas articuladas, para garantir uma cobertura mais abrangente do serviço. A opção pelo trajeto linear implica na sobrecarrega das composições e das estações ao longo do percurso, contrariando a lógica de distribuição adotada para qualquer transporte público de massa.

Quanto às remoções desencadeadas em nome da retórica do progresso, chega-se a números assustadores. Segundo pesquisa realizada pelo arquiteto Lucas Faulhaber e a jornalista Lena Azevedo, baseada em dados oficiais levantados junto à Secretaria Municipal de Habitação foram 67 mil pessoas removidas. E da agenda da sustentabilidade anunciada rigorosamente nenhuma se realizou, a começar pela despoluição da Baia de Guanabara e das lagoas da Barra e seus canais e da recuperação da Lagoa Rodrigo de Freitas. Por fim, o trágico se antecipou com o acidente na ciclovia Tim Maia (complemento luxuoso ao projeto olímpico) que vitimou duas pessoas, resultado de um projeto mal concebido e de uma execução irresponsável de firmas construtoras, cuja reputação hoje encontra-se completamente questionada. Os engenheiros e suas empreiteiras precisam ser questionados em suas responsabilidades sociais e políticas. O argumento técnico não mais serve como álibi, nem muito menos o discurso da infraestrutura como imperativo para o bem coletivo tão banalmente acionado para justificas grandes obras.



As repercussões dessa parceria entre público e privado na esfera do urbanismo são evidentes e sintomáticas. Quando o Estado tinha atribuições regulatórias tanto do uso e construção do espaço físico como da implementação de políticas públicas visando suprimir desequilíbrios sociais, o urbanismo tinha a totalidade da cidade como objeto de suas estratégias e formulações. O modernismo aceitou o desafio e desenvolveu metodologias de ordenação do espaço físico para assim garantir o bem coletivo, porém a eficácia e viabilidade de suas proposições dependia de uma forte centralização das decisões políticas. Com a crise do modernismo, surgiu a desconfiança para com qualquer modelo totalizador, e a cultura do local e do fragmento se impôs no pós-modernismo. No Rio de Janeiro, vimos tal mudança de concepção com o projeto Rio-Cidade, elaborado pelo arquiteto, urbanista e depois prefeito Luiz Paulo Conde, cuja ideia propulsora fora revitalizar os principais corredores da cidade para desse modo incrementar a qualidade de vida e irradiar sua energia renovadora na escala do bairro, configurando-se desse modo uma operação flagrantemente contextualista.

A lógica do “urbanismo olímpico” é completamente distinta: sua estratégia é realizar “grandes projetos urbanos”[1] capazes de atrair investimentos e desse modo trazer vitalidade econômica, especialmente pela valorização imobiliária, para áreas novas ou requalificadas.

A intenção é apresentar a cidade como um lugar inovador, estimulante, atrativo com instalações modernas e adequadas para se visitar e consumir[2]. A lógica do marketing e do capital imobiliário define outro modo de ação e de determinação de prioridades, um outro planejamento. Um investimento maciço é mobilizado para criar zonas de alta tecnologia e interatividade, intensificando centralidades existentes e requalificando outras para produzir uma nova sinergia. Porém, o mais perturbador é que essa lógica não considera a questão da desigualdade urbana e social, muito ao contrário, aceita tal condição e a estimula.

Os grandes eventos não pretendem minorar a histórica desigualdade do Rio de Janeiro, antes buscam fortalecer potencialidades existentes e incentivar vocações potenciais.

Nessa lógica do capitalismo tardio, o urbanismo perde sua importância de instancia regulatória e organizacional do território, e a arquitetura deixa de lado sua preocupação com o programa de natureza social e com o ajuste rigoroso entre funcionalidade, economia e razão estrutural para se converter em imagem sedutora para atrair uma nova massa de consumidores. Contudo, frente à competição entre os grandes centros para captar novos olhares, a cidade deve contrabalancear a imagem de pulsante espaço cosmopolita com a afirmação da sua particularidade em relação aos seus competidores. Assim, o Rio 2016 deve oferecer estruturas tão ou mais modernas quanto as competidoras, logo, deve ser equivalente a elas em brilho, velocidade e espetáculos, mas isso paradoxalmente significa se igualar a todas as demais cidades. Por isso, ela deve simultaneamente produzir a imagem de que se trata de uma cidade única, singular, inigualável: Rio Cidade Maravilhosa do século XXI. Trata-se, portanto, de uma “guerra de imagens” e aí a cultura assume importância na confecção desse capital simbólico[3] colocando a estética a serviço do empreendedorismo urbano.



* Este texto é uma versão revisada e ampliada do artigo que publiquei em CADERNOS GLOBO nº 10 – “Somos todos Olímpicos”, lançado durante os Jogos Olímpicos do Rio 2016. O título inicial era “Urbanismo Estético”.









[1] NOVAIS, P. “Urbanismo na Cidade Desigual: o Rio de Janeiro e os Megaeventos”. R. B. ESTUDOS URBANOS E REGIONAIS V.16, N.1, p.11 / MAIO 2014.
[2] HAVEY, D. A Produção Capitalista do Espaço. São Paulo, Annablume, 2005, p. 176
[3] IDEM, p. 235

sábado, 30 de agosto de 2014

New York, New York!

Empire State

Aldo Rossi en NY

New Museum - Saana

Cezanne - Met

Rembrandt - Met

Velazquez - Met

Novo WCT

Rock Centre

Rock Center

Rock center

Mies Van der Rohe - Seagram building

Inside Skyline

Museu de História Natural

Brooklyn Bridge

Matisse - Moma


O que mais sinto falta de Nova Iorque é do ritmo: intenso, vertiginoso, sedutor, hipnótico, viciante, lúdico. Por todos os lados, ao redor, acima e abaixo, somos  tomados pelo fluxo. O prazer do puro movimento.
Se Roma é uma cidade obra de arte – ansiamos encontrar a piazza de Bernini, a chiesa de Borromini, as ruínas do império romano – em New York, antítese por excelência da capital da antiguidade, buscamos a experiência da metrópole moderna.  Não há como pensar no Rockfeller Center como uma expressão “elevada” da arte da arquitetura, não há como negá-la, contudo, como forma urbana épica, mais escala e dimensão. Roma (assim como outras cidades históricas) opera por consolidação, camadas após camadas formam estratos de tempos geológicos.
Nova Iorque é uma cidade que deixa as pessoas serem o que são, tamanha diversidade. Judeus, muçulmanos, indianos, chicanos, sul-americanos, chineses, japoneses, italianos, franceses, italianos, alemães, hispânicos, brasileiros e americanos de todas as partes, todas as línguas se apresentam. Os números impressionam: numa cidade de cerca de 8 milhões de habitantes passam, em média,  mais de 3 milhões de visitantes por mês. Nesse espaço da multidão e movimento frenético, o turista ali não é um corpo estranho, ao contrário, faz parte da cidade. Uma Babel de línguas onde não há distinção estrita entre nativos e estrangeiros. Seria estranho, por mais paradoxal que pareça imaginar a Big Apple só com nativos nova-iorquinos. É, nesse sentido, uma metrópole do mundo tal o grau de cosmopolitismo vigente.
Outro aspecto que impacta ao primeiro olhar é a escala da cidade. O tamanho das coisas impressiona e, é claro, o ponto de referência dominante são os imensos arranha-céus com sua base gigantesca e altura estonteante. Desde os edifícios maciços de tijolo, passando pelos arranha-céus inaugurais Empire, Chrysler e Rockfeller, pelas modernas torres de vidro pós-miesianas até finalmente ás torres infinitas contemporâneas como o novo WTC.  Para arquitetos a escala física da metrópole impressiona, como também a generosidade dos passeios e avenidas: o grid ininterrupto do traçado se rebate nos arranha-céus multiplicando a sensação das dimensionalidades em fuga. Mas as quantidades não apenas são sentidas na arquitetura e no urbanismo, estão presentes na alimentação com pratos fartos, nas roupas largas, nos carros enormes dos quais a limusine é o exemplo caricato, e até na grande tela de Pollock e cia. De fato, quando se tem em conta a poderosa escala física da cidade, esse aparente exagero dos tamanhos não é extravagância ou ostentação, mas tão somente a compatibilização mais “natural” com o todo metropolitano.
Porém, a escala de Nova Iorque não se restringe ao aspecto dimensional e métrico. A outra escala é a das intensidades dos acontecimentos, dos eventos, em suma, dos programas que a cada momento se renovam. New York é uma cidade de intensidade de Programas e curiosamente com um traçado urbano tão contundentemente regular – o categórico grid – baseado em linhas e ângulos retos que se poderia dizer concebido para ser o caminho mais direto entre dois pontos. Não é o que ocorre: nunca se vai diretamente de um ponto ao outro, no meio do caminho sempre há algo para se ver, apreciar, descobrir. Não poderia ser, portanto,  outro senão Nova Iorque o lugar que o arquiteto Rem Koolhaas, numa intuição brilhante, identificou como a cultura da congestão e daí tivesse derivado a estratégia da congestão programática em seus projetos arquitetônicos e urbanísticos. Fica evidente que não basta apenas misturar usos distintos buscando uma combinação original e caprichosa, tudo depende da escala de intensidades reais e potenciais para que tal condensação programática se viabilize e suscite reações inesperadas.
Mas Nova Iorque não é só aceleração. O Central Park com seu traçado romântico e pitoresco no coração do grid é a pausa que contrasta e evidencia este estado de ser em fluxo veloz. Novamente, é nas telas de Jackson Pollock (mais do que no Boogie Woogie de Mondrian) - que encontramos a mais adequada tradução dessa aventura urbana: o grande formato, as redes diversificadas e sobrepostas, a conturbação contínua, a movimentação inebriante, as diversas velocidades do dripping, a alternância entre traços velozes e pontos de coagulação. Assim, estamos em constante movimento, mas este não se restringe ás exigências da produção, ao contrário, oferece aberturas para o ócio, para o lúdico e para a pura apreciação descomprometida. Estar à deriva é um dos encantos da cidade. E nenhum ponto condensa mais essa conjunção entre atravessamento e coagulação que a Times Square , mais que urbana, hiperurbana segundo Marshall Bernman[1] tal a vibração ininterrupta, a densidade de acontecimentos, a agitação contínua que leva a um índice inigualável da experiência urbana da modernidade. Nesse palco hiperurbano, é possível ser também o Outro, se permitir “expandir além de si mesmo”, “ser uma estrela” (BERMAN, p. 18)  na multidão sob o foco estreboscópico dos painéis de led dos anúncios publicitários.
New York é, em si, uma personagem, pois atua e é representada em diversas formas de expressão, das quais indiscutivelmente o cinema é um dos mais emblemáticos. Os tipos característicos, os locais marcantes, os edifícios icônicos palco de grandes eventos, o grande Central Park, tantos são os set de filmagens, as locações marcantes. Não há como não ir ao Central Park e não reviver “Hair” de Milos Forman, passar pela ponte do Brooklin e não lembrar de “Manhattan” de Wood Allen, não sentir a temor ao passar pelo Dakota Building do “Rosemary’s Babe” de Roman Polanski , dirigir pela 6th Ave ou pela Times Square e pensar na neurose purificadora de Travis Brickle em “Taxi driver” de Martin Scorcese. Isso sem contar com os inúmeros filmes que tiveram no Empire State ou no Chrysler Building ícones da metrópole. Passar por tais lugares produz uma espécie de estado de suspensão em que não conseguimos mais decidir entre a realidade e a fantasia e essa sensação é uma sensação de intensificação, na qual a realidade se vê incrementada pela ficção.
Em New York a tradição é a da modernidade na era da hipermodernidade, da transformação contínua ocorrendo sobre um grid inflexível e em meio a quadras gigantescamente maciças. Uma experiência do ritmo moderno, de sucessão de continuidades e descontinuidades, da embriaguez viciante e vertiginosa pela multiplicidade e simultaneidade, do consumo mas também do instante lúdico com o inesperado e o curioso. Da alta cultura à cultura de massa, tudo pede para ser experimentado, participado,  e não há como ser apenas ou ator ou expectador, senão uma mistura dos dois. Experimentar, enfim, essas novas combinações é o que nos torna mais vivos, vivazes. Justamente ali, onde a escala da metrópole parece desmedida, construída para além da escala humana, o eu não é esmagado, antes parece sublimemente revigorado.


Times Square

Times Square

Memorial Obelisco

Memorial - Rio das almas perdidas

Pollock - MOMA

Johns - MOMA

Flatiron

Hamburguer 
Cupcake - Chelsea Market

Lego Store
Chelsea market

Serra - Dia Beacon






[1] BERNAM, M. Um século em Nova Iorque – Espetáculos em Times Square. São Paulo, Cia das Letras, 2009.

terça-feira, 22 de abril de 2014

Ministério da Educação e Saúde, 1936-1945

Ministério da Educação e Saúde, 1936-1945


ARQUITETURA MODERNA E VONTADE CONSTRUTIVA*


Levando-se em conta o processo de afirmação das tendências construtivas no Brasil, o fenômeno da Arquitetura Moderna surpreende pela precocidade. De fato, desde meados da década de 1930, a arquitetura produzira obras de repercussão nacional e internacional enquanto, as artes plásticas ainda estavam tentando assimilar as conquistas cubistas de Picasso e Braque.

A intensidade e repercussão pública dos edifícios modernos é fato inédito tanto que atrai, de imediato, a atenção do Museu de Arte Moderna de Nova York - MOMA e motiva a exposição (e a publicação do livro) “Brazil Builds”, já em 1943. Contudo, o surto da arquitetura moderna resulta da associação problemática com o governo autoritário do Estado Novo e tem seu centro geográfico na então capital federal: a cidade do Rio de Janeiro.

Inútil especular se, sem tal suporte oficial, a nova arquitetura teria ou não mesma sorte. O fato é que por tal via, ela se realizou de maneira súbita e em grande escala, construindo predominantemente edificações de caráter público e administrativo. O edifício sede do Ministério da Educação e Saúde - MES (1937-43) é o marco decisivo que projeta a arquitetura brasileira, revelando nomes como Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Affonso Eduardo Reidy, Jorge Moreira[1], que posteriormente teriam elevado a arquitetura brasileira a um nível de destaque jamais alcançado.  Evidentemente destacam-se ainda outros arquitetos como os irmãos Milton  e Marcelo Roberto[2] que nos mesmos anos estão realizando obras importantes na Capital. Em São Paulo, outro centro importante, projetistas como Gregori Warchavichik, Rino Levi, Álvaro Vital Brazil  e Oswaldo Bratke começam a construir edificações modernas, assinalando a vitalidade do movimento no país.

É consenso em nossa historiografia ver no prédio do Ministério da Educação e Saúde – MES a gênese do projeto moderno da arquitetura no Brasil. Objeto de concurso público, em 1936, o projeto de linhas historicistas proclamado vencedor pelo júri acadêmico não foi construído. O ministro da educação Gustavo Capanema e o grupo modernista que dirigia o ministério percebem o contra-senso e sugerem a contratação do jovem arquiteto Lucio Costa para realizar um projeto em consonância com o anseio do novo. Este indica outros jovens partidários[3] da arquitetura moderna para, em conjunto, realizarem o projeto definitivo. Apesar dos esforços do grupo, eles mesmos reconhecem as insuficiências da nova proposta, e decidem contratar o arquiteto franco-suiço Le Corbusier para orientar o projeto em sua versão definitiva.

Pelo lado do Estado Novo, assumir uma arquitetura de vanguarda nas novas sedes institucionais do Governo significava enunciá-las como símbolo da modernização do País e da efetividade da política cultural do Estado.

Para Lucio Costa e demais jovens arquitetos defensores do moderno, contudo, a grandeza e o mérito da nova arquitetura seria justamente a resistência, senão franca oposição à qualquer forma retórica, defesa intransigente da autonomia de linguagem plástica. O verdadeiro capital simbólico da moderna arquitetura estaria, portanto, em outro plano: na exemplaridade e racionalidade de seus próprios procedimentos, ou seja, na sua própria realização como legítimo feito moderno. A propalada desenvoltura plástica da arquitetura moderna no Brasil não seria mera conseqüência de uma cultura que preza o ornamental ou o virtuosismo individualista (acusação feita por Max Bill por ocasião de sua visita ao Brasil, em 1951), antes seria a exemplaridade moderna ansiosa de sua própria realização.

Ciente da incipiência do ambiente sócio-cultural no qual a moderna arquitetura se inseria,  Lucio Costa, principal liderança do movimento se interroga sobre os limites e as possibilidades do projeto moderno no Brasil. A associação entre arte e técnica, bem como a crença na potência esclarecedora da forma moderna, próprias às vanguardas construtivas europeias, expõem as evidentes limitações de uma sociedade provinciana e com fortes traços patriarcais. Lucio Costa lamenta não tanto o atraso industrial do país, mas a rala densidade cultural e política existente.

Oscar Niemeyer - Casa do Baile/Pampulha, 1943


Como interpreta G. C. Argan[4], a vanguarda arquitetônica brasileira não se colocou o problema funcionalista da busca de equilíbrio entre quantidade e qualidade, o que a levaria inevitavelmente a confrontar problemas da habitação social, do urbanismo e do planejamento. Apesar do crescimento econômico desigual, das cidades passarem por um acelerado e descontrolado crescimento populacional, dos problemas sociais se agravarem, a arquitetura moderna optou por enfatizar a dimensão qualitativa (entenda-se formal e técnica) dos programas que atendia, uma vez que na maioria dos casos, tratava-se de centros institucionais de ampla visibilidade pública.

Tendo em vista que tais realizações se davam sob o peso do atraso e da inércia, parece claro a aposta dos jovens arquitetos modernos na qualificação cultural que a arquitetura traria para o desenvolvimento de uma sociedade plenamente cívica e democrática. Lucio Costa escreve a propósito do edifício do Ministério da Educação e Saúde:

O Ministério da Educação, por sua pureza formal e pela ideia que dá do domínio da razão sobre a inércia da matéria, contrasta fortemente com a maior parte das edificações circunvizinhas... Além de belo, o edifício tem valor simbólico porquanto representa a vitória das novas tendências sobre o conformismo e o dogmatismo predominantes.[5]


É fato reconhecido a influência dominante de Le Corbusier sobre a moderna arquitetura no Brasil. Embora tivesse conhecimento das propostas de Gropius, Mies Van der Rohe e F. L. Wright, a razão da escolha, segundo Lucio Costa fora a capacidade do mestre franco-suiço de integrar em sua doutrina os aspectos sociais, técnicos e artísticos. Na projetística de Le Corbusier problemas empíricos da construção, as demandas programáticas, as articulações construtivas da forma, enfim, tudo que envolve o projeto corriam paralelos, sem nexos causais predeterminados, e só se resolviam no interior do processo projetual, expressos na dimensão do objeto sensível. Em suma, o decisivo é o Ato Plástico, isto é, a exemplaridade está no procedimento arquitetônico, que se afirma de modo autônomo.

Para além de seu significado monumental ou ideológico, portanto, o MES (1936-42), é decisivo porque assinala uma fundamental mudança de compreensão do problema da linguagem na arquitetura.  A questão fora objeto de longa meditação por parte de Lucio Costa, como se vê em um de seus textos fundamentais “Razões da Nova Arquitetura” (1934). Diz respeito ao debate sobre os “5 pontos para uma nova arquitetura” formulados por Le Corbusier em 1927, e consolidados no volume do “Precisões” de 1930, logo após a sua primeira viagem à América do Sul, em 1929. As considerações sobre a “ossatura independente” contidas no texto “Razões” são precisas e demonstram uma compreensão aguda das consequências linguísticas e estéticas: “Parede e suporte representam hoje, portanto, coisas diversas; duas funções nítidas, inconfundíveis... permitindo outro rendimento ao volume construído”[6]. Lucio Costa reconhece nessa disjunção o segredo da nova arquitetura pela liberdade que confere ao arranjo da planta e da fachada.

Contudo, compreensão teórica não significa controle consciente da linguagem moderna na prancheta. Como se viu, o caso do projeto do MES é revelador, pois a equipe brasileira embora compreendesse os princípios corbusierianos, os tomavam como regra literal, portanto restritiva, não como princípio de liberdade. Os “5 pontos” são, de fato e de direito, uma das únicas elaborações lingüísticas da teoria da arquitetura moderna, que procura dar conta das novas possibilidades sintáticas do vocabulário abstrato moderno. Longe de estabelecer um alinhamento causal (o que poderia resultar numa academicização precoce e, portanto, num execrável “estilo moderno”), Le Corbusier demonstra que os novos princípios são concebidos como um “livre jogo”, um debate que deve necessariamente se resolver no campo de batalha que é o ato projetivo. A equação dos “5 pontos” se conjuga como um  jogo de diferenças[7], no qual nenhum dos elementos encontra significado ou posição fixa.

E Le Corbusier surpreendia ainda mais ao demonstrar que cada um dos princípios poderia se desdobrar em tantos outros. Assim, o corolário da planta-livre (ou da estrutura-independente, dá no mesmo) é a promedade architeturale. Da mesma forma, da preocupação com a insolação excessiva, o brise-soleil se converte verdadeiro mecanismo plástico-funcional dinamizador da fachada livre. A percepção dessa disponibilidade é crucial, e autoriza Lucio Costa a elaborar no projeto do edifício do Parque Guinle (1948) similaridades lingüísticas entre a planta moderna e a construção colonial; permite ainda a Oscar Niemeyer expandir o plano livre liberando-o do confinamento da secção regular, moldar a estrutura de cobertura como perfis plásticos, desenhar pilotis escultóricos, combinar volumes orgânicos, estratégias adotadas no conjunto da Pampulha (1942); e libera Affonso E. Reidy para, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (1953) a exploração das articulações construtivas da estrutura-independente; incentiva os irmãos Milton e Marcelo Roberto à livre exploração do plano das fachadas do edifício vertical administrativo, caso do edifício Marques do Herval (1952) e do edifício Guarabira (1953).


A.E. Reidy - MAM Rio, 1953-54


Irmãos Roberto - Edificio Guarabira,  1953


A velocidade de realização da Moderna arquitetura no Brasil surpreende a todos, num ritmo contínuo e desconcertante, até atingir o ápice com a capital Brasília, no final da década de 1950, período em que, em termos políticos, o país se redemocratiza. Novamente, Lucio Costa (projeto urbanístico) e Oscar Niemeyer (sedes governamentais) protagonizam o feito, não mais agora restrito à escala da arquitetura, mas alcançando a dimensão do planejamento urbano. Justamente nesse momento, as tendências construtivas se afirmam com o concretismo e neoconcretismo. Também nesse contexto, outro surto de produção arquitetônica começa a se afirmar, agora em São Paulo, sob a liderança de Vilanova Artigas, seguido por Paulo Mendes da Rocha, Joaquim Guedes[8], e outros.

Tal sintonização foi logo percebida pela crítica, bem como as possibilidades por ela divisadas. Mario Pedrosa enxerga a oportunidade de se colocar em debate o tema da Síntese das Artes por ocasião do Congresso Internacional de Críticos de Arte, realizado no ano de 1959 em Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro. Pedrosa partia do pressuposto de que com Brasília, finalmente nossa experiência moderna alcançou um patamar que permitia, pela primeira vez na história da cultura brasileira, postular a dimensão iluminista do Plano, de se ultrapassar a utopia pelo planejamento racional, a inércia do passado e o incerto e imprevisível presente pelo horizonte de um futuro projetado. A união de esforços criativos coordenados pelo Plano significa a integração da arte num projeto político cultural, o que implica a participação da esfera mais ampla da sociedade, envolvendo artistas, Estado, indústria e trabalhadores.

Obviamente Pedrosa não via na nova capital a realização plena desse projeto de síntese. Antes concebia o acontecimento “Brasília” como a ocasião para a abertura de debate público sobre o caráter e a função das artes, tanto no que se refere às possibilidades de entendimento mútuo entre os meios, como na relação das artes com as demais esferas da sociedade.

Ainda que Mario Pedrosa credite a Brasília tal condição, não houve por parte de artistas e arquitetos interação ou mesmo união de esforços que justificasse algum projeto em comum.  Não deixa de ser surpreendente de fato, que advindo de bases semelhantes – o projeto construtivo moderno – arquitetura e as artes não tivessem manifestado interesse em debater e integrar suas produções.

Ainda que inexista encargo ou mobilização comum entre os dois lados, a título de provocação, vale arriscar algumas eventuais afinidades entre a arquitetura moderna e a vanguarda construtiva, particularmente com o neoconcretismo. Não seria, é claro, uma afinidade de tipo negativo, advindo do fato de ambos terem sido acusados de desvio da tradição racionalista da arte. Ao contrário, ela se daria no nível cognitivo dos procedimentos, mais especificamente no modo de conceber e lidar com a geometria.

Lygia Clark - Bicho


As torções empreendidas pela arquitetura moderna no vocabulário do racionalismo europeu denotam uma compreensão da geometria como linha/campo de força e não como forma ideal. Pouco importa qual estratégia, se a expansão sensível do plano ou densificação da forma tectônica, tudo se conclui na recusa à redução da forma a puro ente geométrico. De modo similar, as torções fenomenológicas impostas às figuras geométricas tornam a experiência das obras neoconcretas um campo de reversibilidades entre corpo e espírito, algo que não consente dualismos ou dicotomias[9].

Amilcar de Castro - Chapa triângulo

Franz Weissmann - Espaço circular em cubo virtual, 1978


 Todo o problema consistiria em tratar figuras geométricas como encarnações sensíveis, fazendo-as participar das condições instáveis e instantâneas do real. O que significa repor a questão da origem da geometria, ou nos termos de Edmund Husserl suspender fenomenologicamente a tradição e se voltar para o ato de geometrizar – que é uma experiência, uma vivência sempre individualizada. O que se pretende é flagrar a emergência desse raciocínio de correlacionar coisas concretas – figuras, formas - no horizonte móvel do espaço-tempo. Nesse processo, a percepção cumpre papel fundamental, pois ela é a condição do mensurar distintas qualidades das coisas. E isso não só com vistas à contemplação estética da paisagem, mas sobretudo visando à satisfação de utilidades práticas do localizar, mover, operar, habitar. Nessa adesão ao mundo, a ciência da geometria encontrou motivação para avanço e aprofundamento de seus conteúdos. O contato da geometria com o mundo é o modo autêntico de reinventá-la.

João Masao Kamita – maio de 2011




* Publicado originalmente no catálogo  Europalia International, que em 2011 teve o Brasil como país convidado. O texto saiu na seção Art in Brazil 1950-2011 -  p. 37-42. com curadoria de Ronaldo Brito.








[1] Lucio Costa (1902-1998) teve participação crucial na vinda de Le Corbusier ao Brasil, foi um dos fundadores do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e tem obras marcantes como os edifícios do Parque Guinle (1944), os planos urbanísticos de Brasilia (1956) e da Barra da Tijuca-Rj (1967); Oscar Niemeyer (1909) é o mais famoso arquiteto brasileiro, filiou-se ao partido comunista em 1957, projetou e construiu obras fundamentais como o conjunto da Pampulha (1942), o edifício Copan (1951), a Casa das Canoas (1953), os palácios de Brasilia (1956-1960)  a sede do Partido Comunista em Paris (1966), a editora Mondadori, na Itália (1968), e em 1998 recebeu o prêmio Pritker de arquitetura; Affonso Eduardo Reidy (1909-1964) um dos únicos arquitetos modernistas a se dedicar ao urbanismo, foi arquiteto da Prefeitura do Distrito Federal, na então capital Rio de Janeiro, onde realizou obras marcantes com o conjunto residencial Pedregulho (1946), o Museu de Arte Moderna (1954) e a urbanização(em parceria com Roberto Burle Marx) do Parque do Flamengo (1962-1964); Jorge Moreira (1904-1992), entre suas obras mais importantes estão as Residências Sérgio Corrêa da Costa, (1951/1957) e Antônio Ceppas (1951/1958), mas sua realização maior é o campus da Universidade do Brasil, na Ilha do Fundão (1949-1962).
[2] Os irmãos Milton (1914-1953) e Marcelo (1908-1964) formaram um dos mais importantes escritórios de arquitetura. Destacam-se pelas pesquisas tipológicas com o edifício vertical e entre suas obras estão a Associação Brasileira de Imprensa – ABI (1936), o Aeroporto Santos Dumont (1936) e o edifício Marques do Herval (1953).
[3] A equipe era formada por Lucio Costa, Affonso Eduardo Reidy, Jorge Moreira, Ernani Vasconcellos, Carlos Leão e Oscar Niemeyer.
[4] ARGAN, G. C. “Arquitetura moderna no Brasil”. IN.- XAVIER, A. (org.) Depoimento de uma geração. São Paulo, Cosac &Naify, 2003.
[5] APUD, Argan, p. 173.
[6] “Razões da Nova Arquitetura”. In.- Lucio Costa: Sobre Arquitetura. Porto Alegre, uniritter, 2007.
[7]Esta definição da linguagem como jogo de diferenças é de Ferdinand Saussure. I.A. Bois, na sua leitura semiológica do cubismo estabelece paralelos entre as análises de Saussure e o movimento de liberação do signo plástico que o cubismo analítico de Picasso e Braque. Ver “A lição de Kahnweiller” (Pintura como Modelo, Martins Fontes, 2009) e “The Semiology of Cubism” (Picaso&Braque: a symposium, Moma, 1992).
[8] Depois da geração de Warchavichik, cabe a Vilanova Artigas (1915-1985) o papel de liderança do que foi chamado de “brutalismo paulista”, o que remete a emergência de sua obra ao contexto da crise da arquitetura moderna nos anos 1960. Ênfase nos aspectos construtivos e no sentido público da arquitetura define essa contundente obra, capaz de provocar reverberações nas obras singulares de Paulo Mendes da Rocha (1928), Joaquim Guedes (1932-2008).
[9] Ver a esse respeito BRITO, Ronaldo. Neoconcretismo – vértice e ruptura do projeto construtivo brasileiro. São Paulo, Cosac &Naify, 1999.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014



ANTONIO MANUEL NO MAM-Rj

A volta de Antonio Manuel ao MAM-Rj é fato digno de nota. Desde 1973, quando teve cancelada sua exposição por causa da polêmica obra “Bode”, o artista não tinha uma individual. Fora lá, três anos antes, que apresentou a célebre performance “O Corpo é a Obra” no Salão Nacional de Arte Moderna, após ter a obra sido rejeitada pelo júri[1].
Não se trata exatamente de um ajuste de contas histórico que o Museu estaria prestando, não seria o caso, nem muito menos seria necessário. Mesmo porque muito de sua formação se dera naqueles espaços, mais precisamente, naquele que poderia ser considerado um espaço neoconcreto por excelência.
 A individual de Antonio Manuel não é uma homenagem retrospectiva  à um artista consagrado. Apesar de algumas obras serem de períodos anteriores, a maior parte dos trabalhos é das décadas de 1990 e sobretudo dos anos 2000, ou seja, parte da produção recente do artista.
No entanto, algumas questões, a meu ver, persistem na obra de Antonio Manuel. O debate com  a tradição construtiva percorre grande parte dos trabalhos. É como se Antonio Manuel tivesse identificado nos dilemas e impasses do projeto construtivo o foco de nosso recorrente dilema histórico: a tensão entre idealidade e empiria.
O idealismo franco e voluntarista dos movimentos construtivos no Brasil (do concretismo à arquitetura moderna) na sua afirmação de uma arte que se integre à ordem social, a crença na “Vontade de Ordem” como vetor projetivo de nosso destino histórico, a energia lírica e subjetiva que a arte deflagra pela intensificação dos processos de participação e sensibilização, enfim, muito de tudo isso Antonio Manuel parece ter herdado do projeto construtivo brasileiro. Artistas da vertente mais propositiva do neoconcretismo, contudo, foram fundamentais para que o artista escapasse do dogmatismo construvista e se atirasse na via do experimentalismo lúdico e por vezes iconoclasta: Hélio Oiticica, Lygia Pape e Lygia Clark.
Mas a liberação que a experiência neoconcreta ensejou logo se chocou frontalmente com o ambiente avesso e repressor instaurado pelo regime militar. Ronaldo Brito[2] apontou o paradoxo: justamente no momento do “exercício experimental da liberdade” ao qual Antonio Manuel adere de imediato, o espaço da liberdade se fecha no Brasil.
No entanto, a empiria para o artista nunca se reduziu apenas à dimensão política. No final da década de 1960, momento em que o artista aparecia no cenário artístico, era também o momento em que o Brasil começava a entrar no mundo da cultura de massa, da comunicação por imagens impressas e do consumo de mercadorias.

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Até que a imagem desapareça - 2013






A razão da contemporaneidade de Antonio Manuel se deve, a meu ver, por ter colocado em xeque o idealismo do projeto construtivo, assumindo a estratégia do desvio produtivo que suscita o paradoxo crítico. O artista sabe perfeitamente que essa integração entre arte e vida estava implícita no construtivismo moderno, e coube a Bauhaus o passo derradeiro. E de fato, o projeto construtivo nesse sentido conseguiu se impor na programação visual, na arquitetura, no design, no urbanismo, no planejamento, enfim.
Porém, visceralmente mergulhado nas condições problemáticas do momento histórico local, Antonio Manuel não pode como seus antecedentes, nutrir crença na força exemplar da forma construtiva, cuja evidência lógica e formal seria capaz de estimular uma percepção inteligente do mundo dos fatos empíricos. A empiria não se rende a arranjos ideais, ao contrário é fator de resistência, opacidade e obscurantismo. Mas é também a dimensão da vitalidade, campo de liberação de energias líricas e de movimentação lúdica.
Assim, depois de ter conseguido impor seus padrões de ordem no mundo da vida, a forma construtiva se viu forçada a conviver com diferenças incontornáveis. A plena identificação entre significado e significante proposta pela ordem neoplástica logo se viu fraturada, senão instrumentalizada, como o artista percebeu na página de jornal, origem de um de seus mais contundentes trabalhos – os “Flans” – cujo grid neoplástico serve para organizar as mais desconexas manchetes e conteúdos. Assim, a geometria cristalina construtiva serve para dar legibilidade à violência brutal dos fatos urbanos e da ordem social e política. Ordem ideal e força bruta da realidade se comprimem, trocam golpes, tocam-se, maculam uma a superfície da outra e por vezes quase não percebemos que poderiam ser duas coisas distintas, senão uma e paradoxal entidade.
Antonio Manuel pode ser descrito como um artista rebelde na era da comunicação de massas. Daí o interesse inicial pelo jornal, com sua comunicabilidade instantânea, ligeira, movente entre o relevante e o circunstancial. Mas o interesse também recai sobre o seu processo de produção, e na conjunção entre o impressor e designer, a cadeia de produção se mostra. Manchetes, manchas, imagens, diagramações, matriz, prensas, papel, enfim, foram durante o início dos anos 1970  a matéria prima dos Flans. Na exposição do MAM, o tema retorna sob forma negativa na inédita “Até que a imagem desapareça” (2013) ao mostrar o apagamento da imagem impressa. Não há como não associar tal procedimento com o tema da memória e esquecimento, uma das questões mais complexas e problemáticas da era das imagens digitais e do arquivo inesgotável. A quem cabe o controle; quem decide o conteúdo das informações a serem veiculadas; os fatos registrados; os que devem ser, por qualquer razão ou desrazão apagadas?

Nave - 2013






Sintonizado com todas estas questões, “Nave” (2013)  expõe o dilema. Trata-se de uma cabine de madeira formado por quatro portas, que são vazadas parte de cima. Vemos no interior da cabine, na parte baixa, uma placa de acrílico sobre um monitor que exibe uma sequência de imagens – catadores noturnos de lixo acumulado nas ruas, fotos e recortes de jornal com matérias de violência ou protesto sendo queimadas ou sendo enfiadas por debaixo de uma porta. Na parte de cima um saco pendurado por uma corda, cujo conteúdo não se revela e do qual pingam gotas d’agua sobre o acrílico, embaçando as imagens exibidas.  O estatuto de verdade e objetividade do que é divulgado pela mídia parece ser o ponto crucial da provocação do artista. As gotas que pingam não são capazes de apagar as chamas que consome as fotos e recorte, mas turvam a imagem veiculada. O mecanismo de onde parte a água é escondido pelo saco que o amarra. O que as imagens parecem mostrar é a versão da “realidade crua”, fechada dentro de 4 portas, esta realidade abrupta, imprevisível, explosiva e violenta filtrada pela mídia (mecanismo reiterado pelo plano redundante de acrílico sobreposto) e atenuada pela água que goteja desse mecanismo misterioso. Seria a representação do que chamávamos de “filtro ideológico” que tende a apaziguar a realidade? Talvez, mas estas e as outras perguntas só se tornam mais urgentes, na medida dos acontecimentos recentes, da massa urbana nas ruas e seus movimentos que desafiaram interpretes e interpretações convencionais.
Há algo de explicitamente insólito em “Nave” e “Até que a imagem desapareça”. Esses sacos suspensos, do qual não sabemos o seu conteúdo, nos inquietam e perturbam. Alguns quadros na mostra apresentam (como veremos) um buraco na tela, que não deixam de exalar certo humor, como uma gag visual. Tais justaposições inexplicáveis, certas incongruências e desvios, lances sarcásticos e provocativos são, enfim, procedimentos corriqueiros às montagens dadaístas e surrealistas e em Antonio Manuel parecem calculadas ações que correm por dentro a força lógica da montagem construtiva.

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Nove colunas - 2009

Valores Intrínsecos - 2009

Frutos do Espaço - 1980/2013






A gramática neoplástica é base de muitos trabalhos de Antonio Manuel: as cores primárias, o arranjo ortogonal, a modulação geométrica. Mas a sintaxe límpida e rigorosa de Mondrian parece sofrer golpes perturbadores, irrupções imprevistas, impactos estridentes. Certamente a ordem de proporcionalidade cara ao neoplasticismo é a primeira a ser contestada, como que a dizer que o ideal formal e cívico do “equilíbrio assimétrico” parece cada vez mais distante e irrealizável nos dias atuais.
A cor azul, tão marcante na paleta mondrianica parece desaparecer, ou mais exatamente, tornar-se indistinta, na medida em que tem sua tonalidade ora acentuada se aproximando com isso do cinza chumbo e do negro, ora enfraquecida se confundindo com o cinza claro e o branco. Aquilo que era plano afirmativo se converte em gradação. De modo similar, percebemos divisões que não se conjugam, partes que escapam à modulação geométrica, elementos alheios ao grid de orientação. A tela “9 colunas” (2009)  é cheia de desvios calculados que quebram a ordenação das faixas verticais em sua continuidade articulada, perturbam o equilíbrio geométrico pré-determinado. A graça justamente está nessa iminência de coisas a ruir por força desses elementos intrusos.  Já “Valores intrínsecos”, a paleta é o oposto da anterior, claramente solar com domínio do amarelo e do vermelho e uma ausência significativa do azul. Por força das cores expansivas, a escala da tela é maior e a planaridade enfática. O grid geométrico novamente é intrigante, com quebras de ritmos e continuidades. O segmento cinza nitidamente é o mais deslocado do conjunto. No entanto, insólito mesmo é buraco feito na tela, totalmente estranho à gramática do quadro. Mas quando se compreende que a energia luminosa enfatiza a lateralidade do plano, o buraco abre a profundidade real, dando a ver a parede que suporta o chassi, nos revelando assim a materialidade do quadro. Contraponto dessa vazão, o pequeno ponto (na verdade quadrado) negro levemente deslocado do centro nos atrai para a imensidão amarela no qual está imerso. Assim, uma série de movimentos perceptivos é deflagrada, para dentro, para os lados, para o fundo. Do mesmo modo, as variações de escala são sentidas - amplificada, ínfima, objetual.
Sem dúvida, “Frutos no Espaço” (1980/2013) é a obra mais pura em termos formais. Um grid incorpóreo, límpidas linhas primárias no espaço, estrutura incólume, avessa à contaminações venosas.  Devidamente posicionados contra os painéis expositivos de fundo e o solo de pedras brancas estas estruturas de ferro exibem-se em sua integridade tal qual plantas geométricas num jardim tropicália.  No entanto, essa condição controlada e ideal tem curta duração, pois a força do trabalho é também sua fragilidade. A grade geométrica é firme em suas linhas mas por força da transparência, rapidamente se confunde com o espaço ambiente. As variações de luminosidade e de movimento do corpo no espaço fazem com que tais armações percam sua nitidez e estabilidade, diluindo-se em meio à atmosfera fluida e aberta do salão de exposição. Apenas por um instante, o grid ganha integridade, mas isso sob condições muito, muito abstratas. Contudo, no instante seguinte começam a se dissolver pela contaminação com o ambiente. Mas é exatamente nesse instante a obra se coloca no espaço da vida.

Fantasma - 1994

Fantasma - 1994




Fica claro que a questão se resume ao embate entre CORPO E ESPAÇO. Por um lado as obras incentivam o contato corpóreo, por outro a oscilação perceptiva própria ao corpo em movimento ameaça tais estruturas de desestabilização. Nesse ponto, podemos passar para as considerações sobre as instalações propriemente ditas.  Nelas o diálogo com o espaço empírico é inerente. “Fantasma” (1994) é , sem dúvida, a mais conhecidas das instalações de Antonio Manuel. Pendurados por tênues fios de nylon, pedaços de carvão flutuam no espaço, em alturas variadas e em intervalos que permitem a passagem. O convite a imiscuir-se por esse estranho labirinto é irrecusável, como também o temor em encostar nessa matéria calcificada, efetivamente uma massa negativa capaz de manchar nosso corpo e roupas. A espacialidade é rarefeita e ao mesmo tempo densa, e nessa espécie de "selva impenetrável” como gosta de dizer o artista, o corpo se contorce em movimentos cuidadosos procurando se desviar do carvão pendurado, que ao menor toque faz oscilar a linha de nylon que o sustenta, denunciando assim nosso desajeito, nossa desatenção e falta de cuidado, por mais que nos esforcemos em evita-los.
Ao fundo, colado na parede há uma fotografia de um homem encapuzado cercado por microfones da imprensa. Trata-se de uma testemunha de um crime que não pode revelar sua identidade, um fantasma. A instalação instaura a perturbadora experiência do desejo do imaculado e nosso horror da maculação. Como se pudéssemos nos sentir atraídos e ao mesmo tempo protegidos daquilo que nos ameaça, daquilo que nos é avesso.

Sucessão de Fatos - 2003







Aliás, o contraponto de “Fantasma” é a instalação “Sucessão de Fatos” (2003), um telhado montado no chão, sobre o qual encontram-se caixas circulares de fibra de vidro que contém uma série de produtos (talco, colorau, açafrão, gergelim e páprica). Em “Fantasma” tudo pendia do teto em alturas variadas, a referência era o eixo vertical do corpo; “Sucessão de Fatos” a referência é o chão, sempre estamos olhando para baixo e o cuidado agora é com o inusitado de caminhar por sobre o telhado, mesmo sabendo se tratar de um “revestimento” do piso. A sensação de que as telhas possam quebrar é iminente, mas o convite ao caminhar é irresistível. Não há como não comentar o aspecto insólito da situação e os estranhos objetos pousados e talvez o mais enigmático seja o tanque de água com balde suspenso, de onde pingam gotas. Podemos especular um conjunto de referências que o trabalho suscita, desde o aspecto árido e solar das lajes de favela e dos terraços mediterrâneos, passando por homenagens ao amigo Hélio Oiticica com seus “Bólides”, até pigmentos da prática da pintura e seu elemento de diluição.
Antonio Manuel não ambiciona criar em suas instalações um evento sensorial puro, sob condições controladas e intensificadas para assim deflagrar uma percepção cristalina. Não parece acreditar nessa possibilidade. O espaço real é híbrido por excelência, e não pode decantado em substancia pura. Nesse cruzamento ininterrupto entre subjetividade o objetividade o corpo fenomelógico não opera a “pura redução ao fenômeno”, ao contrário, se vê constantemente assolado e atravessado pela materialidade social e simbólica da realidade. Ao puramente sensorial se justapõe o mental, as projeções do imaginário, as convenções e hábitos arraigados, a física opressiva que administra o cotidiano, em suma, toda uma série de forças e fluxos que nos atravessam. Por isso, o próprio dos trabalhos é muito mais o movimento constante entre o concentrado e o dispersivo, o nítido e o difuso, o voluntarismo e a anestesia, o impulso e a passividade, o padronizado e o aleatório, em suma, movimentos contrapostos de determinação e indeterminação. Somente um artista intrinsecamente metropolitano poderia articular tais demandas entre uma percepção lúcida e uma percepção distraída, inerente à experiência urbana do choque pela estimulação ininterrupta e pelo deslocamento vertiginoso e obsessivo. Mas também a deriva pode ser passeio lúdico e desinteressado, legítima tradição moderna de crítica ao utilitarismo produtivista da modernidade.
Antes de passar para, na minha opinião o trabalho mais feliz da mostra, queria tecer algumas considerações sobre a montagem. A estrutura é clara: no grande salão de exposições núcleos de instalações estruturam o espaço, alternando-se com as pinturas. Nessa montagem, as instalações a meu ver tiveram muito de sua força reduzida, justamente por perderem aquilo que lhes daria sentido: a tensão com o espaço expositivo. Alocados num salão genérico e unitário, módulos foram construídos para “receberem” os trabalhos. “Fantasma” teve que se fechar e por isso ganhou um caráter mais sombrio e introspectivo, “Sucessão de Fatos” só funciona se esquecermos o imenso pé-direito e imaginarmos que os painéis expositivos são efetivamente muros, caso contrário a dialética entre piso, teto e parede se perde. “Frutos no Espaço” ficou apequenado na extremidade e num canto do salão, prejudicando a fluidez necessária à sua apreensão.

Ocupações/Descobrimentos - 1998/2013











A única obra que, de fato, se instalou foi “Ocupações/Descobrimentos” (1998/2013). Colocado logo na entrada esses muros atravessam transversalmente o espaço, interrompendo a visão da profundidade da sala e impondo sua frontalidade plana. Á frente um extenso e sinuoso plano amarelo com um buraco no meio que deixa ver outros planos recuados, um vermelho e o outro de tijolo, igualmente perfurados. Os buracos perfazem uma perspectiva cônica e fazem nosso olhar atravessar o espaço, não obviamente ao modo da caixa cênica renascentista, mas ao modo planar de cifrar a profundidade na superfície.  Os muros, ao contrário, impõem um desvio para os lados, de onde acompanhamos os movimentos de superfície. Ao longo desse deslocamento percebemos tratar-se de 3 planos, um sinuoso e solto e dois em ângulo, conectados pelo vértice. O primeiro muro é rebocado dos dois lados e pintado de amarelo. O subsequente é vermelho de um lado e branco do outro, o terceiro não recebe reboco na face interna ao ângulo, por isso deixa a mostra os tijolos e a massa de seu assentamento, mas na outra recebe o mesmo reboco e pintura amarela.
A materialidade tosca do tijolo, do cimento, do reboco pesa e reage ao concreto aparente do Museu, a distensão horizontal corta o salão equilibrando-se ao elevado pé-direito que dá feições monumentais ao espaço, o amarelo irradiante que o recobre expande sua luminosidade fazendo ressoar sua presença por todo o salão.
O percurso por entre os muros faz revelar as várias facetas desses planos, sua articulação formal e estrutural, sua constituição material (inclusive seu coeficiente de resistência e estabilidade denunciado pelos golpes de marreta que literalmente abriram os buracos no muro), enfim, seus vários modos do comportamento do ser e estar no espaço. Fiel à lição neoconcreta, não há verso ou reverso nesses muros, apenas a superfícies em continuidade. Mas agora estas se permitiram atravessá-las por dentro, numa irresistível ação iconoclasta: quebrar/atravessar muros. Nunca o plano construtivo foi tão concreto, tão próximo à construção comum, verdadeiramente banal.





[1] O projeto foi apresentar como obra o próprio corpo nu. Apesar da recusa, o artista se apresentou clandestinamente na vernissage de abertura do salão.
[2] BRITO, Ronaldo. “Fluido Labirinto”, texto do catálogo Antonio Manuel. Rio de Janeiro,CAHO, 1997